domingo, 3 de janeiro de 2016

Menino

"Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (Steven Spielberg/1977) 
      Vejo meu passado, vejo uma criança, e vejo-a mesmo no meu presente, não vejo o futuro, não mais que o entardecer do dia de hoje, não além desta madrugada, quando tentarei sonhar. Este quarto é tudo o que tenho, meus livros, meus instrumentos, meu computador, as meninas estão longe, estão na realidade, elas ainda sonham, todas as três, mãe e filhas. Elas pisam o chão da casa, riem, conversam, dormem e acordam, pisam o mundo, estudam, trabalham, eu? Flutuo olhando o meu passado, vejo uma criança, vejo-a triste, excitada, deprimida, correndo, caindo, se machucando, sentindo, pensando, possuída pelo desejo, frenética, ferindo, se apossando do que não é seu.
      Essa criança nunca foi e nunca será como as meninas, elas são felizes, o menino, não. O menino sente-se nu no meio da rua, na sala de aula, no escritório, saiu despido de casa e não percebeu, agora todos veem e zombam dele, mas disfarçam seu escárnio, sussurram, se o avisassem pelo menos ele sairia da presença dos homens e cobriria sua nudez.
      O menino segue envergonhado, sozinho sempre, mesmo que algumas meninas tenham feito companhia a ele, por algum tempo até o tenham amado, mesmo que alguns meninos o tenham amado, secretamente, desejando seus pequenos pés, brancos e lisos, seus trejeitos de veado. Ele sempre foi amigo delas, as meninas intelectuais, com pênis ou não, já os homens, com ou sem vagina, esses sempre o odiaram. Ele tem medo das mulheres inteiras, amantes que se deitam não pra dormir, em qualquer lugar e de qualquer jeito. Não tem medo, contudo, daquelas três, elas são anjos, diferentes de todos no planeta.
      Mas seria mesmo medo o que ele tem, ou inveja? Inveja de quem é mulher, se ele fosse uma, seria desejado, cuidado, como tal ele teria direito a fraquezas, a uma alma sensível, como mulher ele poderia ter o abraço de um homem, mas não de um marido, de um pai. Pai, isso é o que eu mais quero, mas nem Deus, com todo o seu amor e compreensão, pôde me amar e me compreender como eu quero. Eu quero demais, quero errado, eu quero e não dou nada em troca, eu não sei amar, por isso não sou amado, nunca serei.
      As mulheres, ah, as mulheres, elas criam flores com sua respiração, produzem perfume ao passar, se apossam e não usam, e não reclamam os tolos homens, que usam, mas nunca podem possuir. As mulheres são almas livres, mas somente as mulheres de alma e carne, não os mutantes. Eu sou mutante, mistura estranha de sei lá o quê, pedaços de pedaços do avesso, do avesso e do avesso, queria ser Caetano ou Chico, mas sou um Zé ninguém, sou punk, não jazz, implodindo, nu de mim, pobre menino.

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