quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Sorria, você está sendo filmado

"1984 - The Movie" (do livro de George Orwell)
      Não quero sorrir, por favor, não me filmem.
      Lembro-me de um filme ("Mystery Men"/1999) onde um super-herói tinha um super poder, ele ficava invisível, mas só quando os outros não estavam olhando. Que vantagem havia nisso? Na história eles acharam um jeito de usar esse poder quando precisaram que alguém passasse por um lugar que era vigiado por um circuito interno de televisão. O tal super-herói não foi detectado pelas câmeras porque não estava sendo olhado diretamente por olhos humanos, só por máquinas. Pois é, ninguém é inútil, em algum momento, de alguma maneira, seremos necessários, é pra fazer algo que ninguém mais pode fazer, algo que até então podia até ser considerado medíocre, idiota, sem utilidade.
      Mas como sobreviver até esse momento? Como esperar até que ele aconteça? Como vencer os gritos da multidão dizendo por anos que nossa vida não tem significado, que não servimos pra nada, que somos losers? Como resistir nadando, com as ondas fortes batendo contra os nossos rostos, impedindo-nos de de respirar, salgando nossos olhos, num oceano sem fim de reveses e vicissitudes? Muitos não sobrevivem, se matam antes disso, aos poucos, com mágoas e frustrações, na solidão dos nunca entendidos, apenas suportados, não amados, mas tratados como crianças ou doentes mentais. Outros alcançam esse momento, mas fracos que estão, nem se alegram com ele, enquanto todos estão dançando e cantando ao redor da fogueira, satisfeitos com o calor e a luz da madeira queimando, olhando para baixo, eles olham para cima, para o céu negro, sem estrelas e sem lua, sentindo o frio do espírito, imóveis, indiferentes.
      Não quero sorrir, por favor não me filmem, será que tenho esse direito? Acho que não, as câmeras estão ligadas por todos os lados, nos corredores dos shoppings, nos postes das ruas mesmo à meia-noite. Saudade de quando meia-noite era área vip de monstros, mister Hyde podia dançar e cantar sem ser observado e maldizido por pais de famílias, esses já estavam no sono rem no conforto de seus lares, ao lado de suas esposas frias para eles, não para o mundo, guardando suas crias cheirosas e bem agasalhadas, projetos de hipocrisia. Hoje à meia-noite caminham livremente monstros de boutique, falsas vampiras que ouviram algum falso rock e se encantaram com o vídeo-clipe em hd de um falso artista, durante mais uma de suas tardes mofadas, dentro de suas encarnações no sense, crendo que o caos é a falta de sinal da tv a cabo ou a ausência de wi-fi. Esses pseudo-jovens, que já nasceram decrépitos, mesmo sem ter sentido na boca o doce sabor de um grande erro que se comete por paixão, querem todos os direitos, mas não se submetem a deveres, e passam suas existências aprisionando as almas em selfies e vídeos caseiros, achando-se Kubrick ou Glauber, são menos que Ed Wood. Não, não quero sorrir, não me filmem, se você prestar mais atenção, não me verá, o que eu importo pra você? O que importa a você?

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