quinta-feira, 3 de março de 2016

Alma amiga

     Elas sofrem, gritam, se debatem, se prestarmos atenção nos olhos, conseguimos notar, por trás deles, o desespero de certas almas, aprisionadas em corpos, muitas vezes elegantes, bem cuidados, no lado de fora, mas cadeias escuras e sujas, por dentro. Elas não queriam estar cativas assim, não foram criadas dentro deles, foram colocadas lá por uma potência maior. Com que objetivo? Ninguém sabe, não neste mundo. Em alguns momentos, alguns corpos dão às almas certa liberdade, aquela que é possível, pois livres de verdade só serão na morte, mas o que é a poesia senão morte sem violência, imaginária, com certeza, mas que entrega às almas algum alento? E basta pouco, só um buraco, para que a alma se safe, e se tiver sorte, achará outra, também fugida, que quando seu corpo não estava olhando flutuou. Em alguns segundos duas almas assim podem se apaixonar, e mesmo que voltem para suas cadeias, nunca mais serão as mesmas. Almas que se amaram, se misturaram, perderam e ganharam, criaram uma nova essência, provaram um prazer intenso, mas também abriram a porta para uma dor sem igual, pois mesmo que se casem podem ser constituídas de matérias diferentes. Essa dor não acabará quando a alma voltar para seu corpo, mas lhe fará companhia, e será bem-vinda, melhor que o vazio e na falta de outra alma, a dor será a melhor companheira.
      Escapa-me com frequência, mais que o normal, a corrente é pesada e penosa, como são as de todos nós, auxilia-a o remédio que torna o teto da realidade mais rijo e as paredes mais frias, mas os elos são flexíveis, tanto que às vezes me esqueço que estou enclausurado, me distancio demais do calabouço. Então olho para dentro e desperto, sonho com mundos fantásticos com eternas noites de sexta-feira, onde os amigos do peito estão próximos, música boa é tocada ao vivo e um amor sincero está próximo de ser conquistado. Contudo, logo a visão se turva, tudo fica distante, então, olho para fora e sonho que estou acordado, com aquele gosto de ter provado algo na boca, mas não ter conseguido mastigar e digerir, uma ansiedade de algo que nunca aconteceu, uma saudade de um futuro que já imaginei ser meu presente. As impressões são tão fortes que me acompanham por boa parte do dia, como um Fellini junguiano, no início é difícil discernir realidade de fantasia, mas o que é realidade? A verdade ou uma mentira que contam para nós e depois nós repetimos para nós mesmos, até que um dia nos convencermos que liberdade representa perigo, que melhor é ficar calado dentro da cela.
      Consola-nos achar outras almas ariscas, que enganam a realidade, brincam de voar mesmo acorrentadas, não são muitas que conseguem essa leveza, distraírem-se dos corpos, das leis, das armaduras. Algumas, todavia, se apresentam como são, ou melhor, como eram antes das prisões, com essas fazemos amor verdadeiro, elas vão além das molduras, dos preconceitos, dos padrões de gênero, aliás, essas almas não têm sexo, não precisam dele. Almas amigas, mais que amantes, amantes ainda querem corpos, querem poder e onde há poder não existe amor, amor e carne são incompatíveis, duram por um milésimo de tempo, um instante que deixará depois cicatrizes, marcas dolorosas. Amigos são para sempre, para esses basta uma ligação, uma mensagem, independem de tempo, em uma tarde se faz um amigo para o resto da vida, com poucas palavras conforta-se um querido pois são palavras escritas pela alma, não pelo corpo. Mas existe algo a mais em almas amigas, uma cumplicidade que vai além de preferências, uma afinidade inexplicável, não, não são conexões deste mundo, é algo que vem de antes, de antes do corpo. Almas amigas são simplesmente feitas do mesmo material, por isso se conhecem, se entendem, satisfazem-se, por isso quando misturadas não causam dor.
      Encanta-me você, por te tocar tão fácil, por me tocar tão forte, por me querer sempre, por te gostar, tudo, você não tem defeitos, apenas sombras, mas a lua não pode estar exposta integralmente ao sol, por ela se apaixona quem a ama nova, cheia, crescente ou minguante. Se o amante é sol, que cega se olhado de perto por tempo demais, se com o sol é preciso cuidado para não se queimar, amigo é lua, perfeito para mim que sou desconectado e partido. Vale a pena se esforçar pelos amigos? Amigos não dão trabalho, quando a alma paira à toa, sem rancor e sem proa, abraçam-nos almas amigas, calmas, tão antigas, sem lastros, nos jogam pra cima, e a dor? Essa fica pequenina. O único trabalho que um amigo nos dá é o de esperar por ele, sim, porque às vezes nós, que já experimentamos a fuga, reconhecemos em alguém um pedaço de nós, enquanto que o outro ainda não percebeu isso, ainda se acha preso. Então, é preciso tempo, como o que eu esperei por você, me reconheci em você muito antes de você em mim, mas aguardei, em alguns momentos doeu um pouco, mas não era dor de paixão, era de amigo. Agora te vejo leve, voando comigo, usufruindo a única coisa que levaremos para uma existência desencarnada, almas amigas.

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