terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Pássaro ferido

      Sinto aquele gosto etílico apodrecido na boca, por algum tempo não fui eu, mas a substância que me anestesiava, hoje quero parar, preciso parar, preciso sentir dor. As substâncias que injetamos em nossas veias para aliviar nossa angústia, acabam por nos privar da dor, direito exclusivo e terminal dos vazios. Mas se eu não sentir dor, o que sentirei? Quero esse direito, pelo menos esse, você foi embora, desistiu de me deixar ser eu, tudo o que eu queria era ser você.
      Espelhos, espelhos, reflexos de imagens refletidas, a tentativa de se refletir obsessivamente o outro desgasta o original, diminui a verdade, até que ela seja só um vulto distorcido distante de tudo, como o que se sente sob o efeito das substâncias. Agora preciso estar lúcido, tenho saudades da dor antiga, aquela que me fazia levitar, beber das canções e da poesia o elixir mais raro, como eu me sentia vivo, o sangue corria quente nas veias. Mas ele foi esfriando, o vermelho tornou-se cinza, aguado, o que queimava doía, mas me movia, o líquido gelado misto de vodca barata e água de torneira que enche minhas veias agora só me mantém em pé, morto-vivo.
      Preciso de você, das tuas mentiras, as verdades mais reais que já provei, e que só foram mentiras porque eu não tive paciência para esperar, promessas que morreram antes de criar raízes, folhas que se secaram, antes das flores se abrirem. Preciso muito de você, volta, me deixa sonhar novamente, acreditar que daqui a mil anos eu vou ver o sol, mil anos parece muito? Não era, quando eu tinha sua companhia, quando você me entretinha com suas histórias, seus personagens, mesmo nos finais infelizes eu era feliz, mesmo nas tragédias eu achava encanto, canto, me espantava com teus meandros, e debaixo de teu manto, eu dormia, acalentado por teus contos.
      Hoje vivo um segundo de cada vez, e como são longos. Alguns segundos e passa um dia, mais alguns e já se foi a noite, e são todos iguais, gota a gota minha vida se vai, gotas frias do meu sangue cinza e gelado.
      A cidade, ah, a cidade, já foi tão mágica, principalmente em final de outono, o vento frio, e esse frio, sim, era delicioso, batia em minha pele quente e me causava arrepios, eu via rios de espíritos fluindo ao me redor, me levando, me revelando. Quantos segredos me contaram, o invisível era meu cúmplice, invisível para os outros, não pra mim, ele era colorido, tanto quanto o negro azul pode ser, com olhos brilhantes de diamantes cósmicos. Eu inventava que viveria para sempre, me afogava nos livros, nos historiadores, filósofos e psiquiatras, eles tinham o que minha alma mais queria, não os mercadores, não os arquitetos, não os sacerdotes, na verdade era eu o sacerdote de uma religião de um só seguidor, meu reflexo.
      Agora só me resta o gosto etílico apodrecido em minha boca, substância que cozinhou o templo, queimou os móveis, descascou as paredes que eram revestidas com finas lâminas de ouro, os tijolos estão aparentes, gastos, e os objetos sagrados foram roubados, aqueles que sempre desejaram meu mal, mas que temiam você, quando me viram sozinho, entraram, quebraram e saquearam tudo.
      Volta, pra dentro de mim, reconstrói o que eu desprezei, eu tinha tudo, e me achava pobre, mas você estava comigo, então eu era rico. Fui tolo? Não, não negociei tuas coisas, meus mais caros tesouros, com a alma negra de terno branco, esse sim tem pele fria, mas nem sangue ele tem, cheira parafina, e mesmo frio deixa o ar sufocado, quente e rarefeito quando passa. Quem levou meus tesouros, nem noção tem do que tem nas mãos, deve ter largado em algum canto, um lugar onde tua providência protege aquilo que eu tenho de mais precioso.
      Se você voltar, sei que trará tudo o que perdi de volta, então, me livrarei dos espelhos, desses portais mágicos imundos, seduções mentirosas de quem não pode criar nada, só plagiar. Então me verei como sou e você achará o que sempre procurou em mim, eu mesmo, aquele bebê que já nasceu amaldiçoado pelos homens, mas que você cuidou, disputou entre os abutres, entre os de alma púrpura e roupa azul escuro brilhante.
      Pássaro branco, pousa em minha mão, eu prometo que fico bem quietinho, sei que você é sensível, que bate as asas com qualquer movimento estranho, a mínima violência você percebe, o menor sinal de mágoa te assusta, a sujeira mais elaborada, disfarçada e incensada, não te engana, o cheiro ruim chega às tuas narinas e você se vai. Mas eu preciso de você, só você pode tirar esse gosto etílico apodrecido de minha boca, só uma gota, uma gota do mel que você traz em seu bico e eu viverei, poderei sonhar novamente, terei forças para esperar com calma por mais mil anos.
      Se você adoçar minha alma poderei andar, sentir o vento do mundo no rosto chocar-se com o sangue vermelho, quente e vivo em minhas veias, sim, porque a gota de mel que você colocará em minha boca fará reviver meu corpo. Pássaro branco, que não é pássaro e cuja clareza é mais limpa que qualquer branco que olhos humanos já viram, mas que se deixa ser visto assim, como um pássaro comum, simplesmente por gentileza, por elegância, para não complicar as coisas mais do que já são, pássaro ferido, eu peço a você, volta pra mim e me leva contigo.

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