sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Fruto amargo

      Amargo demais? É isso que temos pra hoje. Dizem que se não há algo bom a dizer, melhor ficar quieto, mas é assim, somente os frutos doces é que fazem bem? Ficar atirando ódio gratuitamente para todo lado, ninguém merece, nem os melhores amigos suportam isso. Contudo, podemos nos comprometer demais, acostumar ouvidos alheios com palavras meladas, então, quando a terra seca, quando a chuva não cai, quando a árvore morre e não dá mais frutos doces, os frutos acres, que surgem naturalmente da alma árida, podem não ser aceitos por quem mimamos com aquilo que acham ser o melhor de nós. Os espirituais dizem que devemos guardar o nosso pior em nós, que quando amargados, é mais prudente nos isolarmos e esperarmos a chuva cair, regar a terra, fortalecer a árvore, fazer nascer os frutos doces, blá, blá, blá. Contudo, algumas almas só sobrevivem plantando palavras, mesmo que os frutos não sejam aprazíveis à maioria, não à primeira vista.
      Os frutos raros nascem não em estações definidas, reguladas, consideradas normais, mas são produtos de tempos de exceção, de estações desequilibradas e irregulares. Esses frutos também não aparecem nas grandes plantações, territórios dos poderes deste mundo, mas em lugares secretos, entre montanhas cercadas de deserto, que guardam jardins exóticos, pequenos e exclusivos, lugares que poucos conhecem, e que menos ainda pisam, plantam e colhem. Então, que escolham, querem os comuns e enjoativos frutos adocicados, vendidos nas feiras por pouco, visto que muitos os oferecem, ou querem provar algo singular? Não, a boca não vai gostar assim de cara, e confundindo as metáforas, os ouvidos não vão entender na primeira vez, teremos que morder um pedaço menor, sentir nas várias áreas gustativas da língua, ou teremos que voltar a fita e ouvir as palavras de novo, um pouco de cada vez, talvez em velocidade mais lenta. O fruto raro na boca do amargo cria palavras únicas que soarão diferentemente nos ouvidos acostumados com o doce, mixando todas as metáforas já que estou sem paciência para alterar o texto.
      A alma é diferente do corpo, a carne pode passar a vida toda se alimentando das mesmas coisas, e se forem as coisas certas, sustentarão o organismo físico e o manterão saudável. Já a alma cresce na diversidade, quanto maior a pluralidade, mais a alma vê, se estimula, se aventura, caminha, toca, aprende e se amplia. O medo do diferente é o medo de viver, e não pense que para isso teremos de subverter princípios fundamentais, trair alianças tradicionais, não necessariamente. Para alguns, isso não é necessário, outros, todavia, que não se acorrentam a fundamentalismo e tradição, pagam preços caros, para mudar e mudar bastante, mesmo que seja só para ter certeza de que existem coisas que nunca mudam. As diferenças desafiam, nos fazem questionar, destroem o maior dos cânceres, o preconceito, enquanto as referências constroem portos, os preconceitos prendem à terra muitas vezes uma nave que nunca tocou as águas, mas que navegue sem temor a alma pelos mares de todos os conhecimentos que são nada mais, nada menos, que as outras almas, joguem os lastros fora, se esqueçam da âncora, deixem leve e solta a nau do coração.
      No final das contas nada é amargo, quando existe poesia, se não fosse assim, não nos encantariam tragédias e amores impossíveis cantados pelos menestréis que já viveram neste mundo e que habitarão para sempre nos corações apaixonados. Uma sala com uma cama é um quarto, mas com uma cama e um vaso com flores, é poesia, no quarto a gente dorme, na poesia a gente sonha. Oito horas de serviço na frente do computador, é trabalho, mas ouvindo música, pensando no ser amado, parando de vez em quando para falar de coisas boas com o colega, é poesia, com trabalho o corpo sobrevive, com poesia a alma transcende. Muitos querem tirar a poesia da vida, assim, limitam a existência a frutos doces e frutos amargos, bipolarização preguiçosa e enfadonha, a poesia encontra estética no deserto, acha relevância na exceção, colore os quadros da alma com paisagens míticas que acham sentido mesmo no que nenhum sentido parece fazer. A poesia é o que nos linka com Deus, não é o trabalho, não é o doce e o amargo, o eterno vai muito além de extremos que muitos arrogam ser no que a vida se resume, vai além do bem e do mal.
      O não que o mundo cospe em nosso rosto, abre a porta de um caminho muito mais extenso e belo que achávamos que o sim abriria, o espírito livre acolhe o não recebido e o esmaga com sua sede de viver, com sua teimosia insana em querer saber o que está por trás dos mitos. Não, não e não, batendo insistentemente contra o peito, adaga dos guardiões dos mistérios, que encerra? O sim encerra, acomoda-se, o não dilacera, escancara, abre, mas não sem força e mesmo com alguma violência, só existe progresso com desordem. Assim não se aprende conhecimento sem dor e como tal, quando é legítimo, é amargo, pode até ser agradável na boca, mas queimará coração e mente, consumirá, dissolverá uma substância para criar outra, nova mesmo que seja com elementos antigos. Nossa alma morre e nasce, quebra-se em mil pedaços e atraída por uma potência desconhecida amalgama-se e se transforma, a força motriz dessa fusão é a poesia, uma inclinação cósmica para a beleza, não a estética do sim, mas do não, da morte, da dor, do amargo.
      Aceite esse fruto, não, não te amo menos por ele ser amargo, ao contrário, ele me é mais caro que todos os doces que já te dei, os doces dei porque me sobravam, não me faziam falta e não me custaram muito. Quanto ao amargo, ah, tirei do fundo de minhas entranhas, gerei no sofrimento, me custou dizer não a sins dos hipócritas, falsos, hereges e de torpes ganâncias. Esse fruto, amargo como é, creia, é o melhor que já dei, o mais raro e sincero, não parece bonito, não será agradável, mas eu tenho certeza, depois de comê-lo, de permitir que sua alma o integre com tudo o que você é, o resultado será inesperado. Será bom? Será ruim? Será diferente, levará você a questionar, a abrir a porta que está depois da porta, você achou que bastaria entrar por uma porta e se acomodar num quarto pequeno e vazio? Pois bem, no fundo do poço tem um alçapão, dentro do quarto tem outra porta, para onde dará essa porta? Não sei, isso é com você, só não tenha medo de provar esse fruto que te dou, um fruto amargo.

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