segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

O mais profundo dos abismos

      Um abismo profundo, maior que aquele em que nos jogamos quando queremos acordar de um pesadelo, contudo, jogar-se no mais profundo dos abismos tem consequência parecida com o dos sonhos, nos faz acordar. Para quê? Para algo que nos revela que por mais que queiramos fugir de prisões, por mais que troquemos de óticas, por mais que alteremos o foco de nossa fé, mudamos os carcereiros, contudo, continuamos prisioneiros. De quê? Do medo da mais terrível das solidões, a ausência de algo que chamamos deus.
      Ninguém existe sem um conceito de deus, damos nomes distintos, singularizamos ou multiplicamos suas manifestações, mas todos, todos acreditamos em deuses. Todavia, a triste verdade é que a grande maioria das pessoas, senão todas, arquitetam deuses a partir de medos, de sombras, de culpas, de preconceitos. Por mais que falemos de amor, de respeito, de diversidade, são nossos egoísmos e males que criam aquilo em que colocamos todas as nossas fichas. Somos seres das trevas, não da luz, nascemos sabendo disso, por isso, mesmo inconscientemente, começamos a projetar esconderijos, desde pequenos, lugares seguros onde podemos sentir um chão sob nossos pés.
      Todavia, continuamos apaixonados pelo abismo e passamos a vida flertando com ele, admirando-o, em segredo, sem contar a ninguém, por isso sonhamos. Em nossas liberações noturnas vislumbramos possibilidades de nos lançar no buraco sem fim, mas temos medo. Na realidade que fazemos com as próprias mãos, há alguma luz, enquanto o buraco é escuro, quem sabe o que há lá no fundo? Será que tem fundo? Talvez o medo maior seja justamente esse, um cair sem fim, onde não existem conceitos que nossa mente possa segurar, delimitar, para entender, no buraco sem fim não existe controle, não existem limites, é só cair e cair.
      Procuramos abrigo nos mais altos dos montes, galgamos por anos por lugares íngremes para depois expormos isso a todos como troféus, a vaidade existe mesmo nos que se calam para a mágoa e para as comparações. Mesmo quieto e meditando, um monge vangloria-se de sua espiritualidade, da montanha que escalou e conquistou, mas esse também está em cadeias, enjaulado em alguma porção de terra sobre um lugar alto, um território pequeno mas escuro, mais escuro até que o mais profundo dos abismos, a alma humana.
      Outros institucionalizam a caridade, e na jactância de serem donos de um deus, assentam-se no topo do mundo, em tronos de ouro, portanto mitras e capas, inventando dogmas. Dogmas são chaves de portas de celas, as portas mais invioláveis que o homem consegue fabricar para protegê-lo do mais profundo dos abismos. Mas é mais que isso, existe um mistério nos dogmas, eles são chaves das chaves, já que ninguém pode confrontá-los, duvidar deles. Eles abrem caixas onde as verdadeiras chaves estão guardadas, as pessoas comuns não têm acesso às segundas chaves, só às primeiras, as segundas pertencem aos semideuses.
      Mas por que tanto medo do abismo? Não, o medo não existe no que vemos nas trevas, ou no que não vemos, não é o que está lá fora que nos aterroriza, mas somos nós. No escuro não nos vemos, perdemos a referência do que somos ou que achamos que somos, assim nos perdemos, não porque caímos, mas porque não nos enxergamos, no mais profundo dos abismos somos espíritos desencarnados. O abismo mostra-nos que o maior de todos os medos que temos é o medo de nós mesmos, do que podemos ser capazes de fazer ou do que não teremos coragem de cometer. Mãos, pés, cabeças, família, sexo, moral, tudo se confunde no abismo, deixamos de ter identidade para sermos partes de algo maior, além do bem e do mal, algo que nunca existiu mesmo existindo eternamente.
      Contudo, também sonhamos acordados, escrevendo textos, compondo música, pintando quadros, encenando personagens, esculpindo materiais, dançando e fazendo mímica, a arte é a única chave do mais profundo dos abismos feita não por homens, mas pelo próprio abismo, e entregue gentilmente a aqueles que se dão ao trabalho de sonhar acordados, que olham além da realidade. Esses não dispensam a morte, a enganam, ignoram os avisos de perigo e pulam, brincam de bungee jump no mais profundo dos abismos, tocam lá no fundo, veem a luz no final do túnel, e depois retornam. Sem esses irresponsáveis que muitas vezes se perdem de vez no abismo, não teríamos a Pietà de Michelangelo, Macbeth de Shakespeare, "Irmãos Karamazov" de Dostoiévski, "Impressão: nascer do sol" de Monet, "La mer" de Debussy, "8 1/2" de Fellini ou "Voodoo Child" de Jimi Hendrix.
      O que faz sentido, o que vale a pena, o que é viver? Acorrentar-se ao topo de algum monte, mesmo que baixo e medíocre, muitas às vezes um pouco de terra seca ajuntada pelas mãos de outros, terra comum que nos é vendida a preço de sangue? Lançar-se no abismo sem fim, mesmo que uma única vez e com um fim trágico e inútil, morrer aos vinte e sete anos e se tornar eterno, não pelo que viveu, mas só pelo fato de ter morrido? Manter um amor platônico com o desconhecido, pular e voltar, passar a existência num vai e vem sem fim, recolhendo pedras preciosas do abismo, para presentear os covardes (ou sábios) com arte?
      Não, eu não disse que lá no fundo do abismo não existe Deus, o verdadeiro, que talvez esteja só esperando que tenhamos coragem de nos libertar das prisões, dos falsos, aguardando para que possa conversar conosco, olho no olho, eu não disse isso. Contudo, o que sei, é que uma experiência realmente espiritual tem muito mais a ver com fazer arte, do que com manter interações com ordens secretas ou instituições humanas. Deus talvez esteja lá no abismo sem fim, não nos altos dos montes, talvez religar-se a ele signifique ter a petulância de ser indivíduo, não coletividade, protagonista do próprio filme, não figurante em festa de alguém que nem sabemos direito quem é, cuja história está repleta de lacunas, não negras, mas vermelhas de sangue de inocentes. 

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