segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O próximo Woody Allen

      Sexo não é tudo na vida durante os dez minutos que seguem após você ter feito sexo, na outra parte do tempo passamos esperando, esperar é algo que a vida nos ensina, e que nos esquecemos em alguns momentos.
      Antes de continuar, vou abrir um parêntese, viver se resume a poucos e determinados assuntos, mas a beleza insiste justamente no fato de que podemos experimentar as mesmas coisas, repetidamente, e sempre provar essas coisas com gostos diferentes. Usar as técnicas artísticas para expressar a vida, como estou tentando fazer aqui com este texto, me permite expressar várias vezes o mesmo assunto, contudo, e é aí que a poesia faz a diferença, olhando cada vez de maneira distinta. Sem poesia a vida fica monótona, pesadamente igual, cópia cada vez mais falsa de algo que já foi bom. Isso só exalta a dor, a faca rasga a carne sempre no mesmo lugar, em cima de uma ferida que ainda nem foi cicatrizada. O poeta, e aqui não me refiro ao ofício de alguns, mas a todo ser humano humilde o suficiente para rir de si mesmo, para se apaixonar pelo simples, para ter a petulância de acreditar no incrível, esse artista pode redescobrir a vida infinitas vezes, provar um primeiro beijo mais uma vez, mesmo que seja daquela companheira que está com ele há décadas, fecho o parêntese.
      Quando meninos, esperamos o fim das aulas para chegar em casa, almoçar e brincar, a rua é nossa cidade, o bairro nosso país, a cidade, um planeta inteiro. Mas o quintal basta para inventar estórias, ser mocinho e bandido de faz de contas, as crianças são artistas naturais, atuam com sinceridade porque acreditam que os sonhos são reais. Brincando na rua não sofremos com esperas, desfrutamos e pronto, até que um dia, a amiguinha passa de mais uma companheira das tardes, igual a outras, para alguém estranhamente especial, o pega-pega lúdico toma outras proporções. Então, esperamos não para correr, se esconder e rir, mas para ver a menina, sentimos algo inusitado nesse primeiro amor. É sexo? Não sei, mas cria uma reação química diferente dentro de nós, uma sensação nunca antes provada, uma força que começa a nascer e que nos levará a fazer as coisas mais malucas desse mundo. Essa energia que esquenta nossos corações transformará nosso conceito de distância, poderemos caminhar por horas, atravessar países, esperar cem anos, só para ver alguém. É amor? Não sei, nunca vou saber, ninguém sabe o que é amor, ninguém sabe amar. Alguns chamam de paixão, uma força misteriosa e imensurável que tanto atrai quanto afasta, tanto quer eternizar, quanto fazer morrer.
      Quando jovens, as obrigações começam a gritar, passar no vestibular, achar emprego, somos iniciados na ciência de esperar. Nesse momento, contudo, a paixão, forte e nova, nos dá asas, e hipnotizados pelos olhos iluminados de alguém, passamos dias e noites estudando, trabalhando, e mesmo com pouco dinheiro no bolso, nos encantamos com descobertas que parecem não terem fim. Esperamos, nesse tempo? Na verdade não, somos levados, para lá e para cá, leves que estamos, flutuamos sobre a dor, sobre o mal, surfamos nas ondas do prazer, tão intenso quanto incompleto, dos encontros, tão frívolos quanto vãos. Mas não é perfeição que buscamos, é apenas emoção, sentir é melhor que raciocinar, importa mais que a moral, que o certo e o errado. Nesse tempo armazenamos culpas que só serão ressentidas vinte anos mais tarde. O grande perigo é embarcar num navio de passageiros, tentar ser mais um num coletivo, a alma ainda não está preparada para isso, ela precisa continuar se movendo sozinha.
      Quando homens, somos obrigados a esperar, à medida que percebemos que outras vidas dependem de nós. Maturidade é entender que o nosso direito termina quando começa o do outro, principalmente se o outro é alguém que veio a existir por escolha nossa. Esperamos nove meses para vir à luz a maior de todas as criações humanas, uma poesia que escrevemos, mas que autoriza o universo a colocar música, a alma humana, tão eterna quanto etérea. Fazer um filho é fazer uma aliança com Deus, criar uma identidade exclusiva a quatro mãos, talvez a única aliança realmente espiritual que todos os homens podem realizar, sejam quais forem suas crenças metafísicas, as outras ou são somente físicas ou são opcionais. Acho que é isso, responsabilidade implica em espera, os loucos e violentos querem resultados imediatos para agradar somente a si mesmos, esses não se dão ao trabalho de esperar nada.
      O que nos resta depois? A morte? Talvez para alguns que parece já terem nascido mortos, a morte seja um tipo de meta, contudo, quem vive de verdade deseja-a menos à medida que envelhece, não por temê-la, mas por gostar de viver. Com certeza a vida só fica melhor com o tempo, mesmo que o corpo não corresponda, mas isso também é vantagem, conhecedores dos limites, cometemos menos erros, mesmo que as culpas do que fizemos vinte anos atrás tornem pesadas nossas almas. Quando velhos, o sexo vai se apagando, a vida não é mais aquilo que acontece entre dois orgasmos, entre dois momentos felizes, mas adquirimos noção de tempo. Passado, presente e futuro passam a coexistir em nossas mentes, convivemos com a esquizofrenia comum a todo ser humano, que não é doença, não necessariamente, em nossas cabeças já não somos mais um, mas muitos. O passado é um entendimento que só adquirimos de fato na velhice, na primavera e no verão da vida é tudo presente, o futuro é uma ilusão passageira que inventamos no outono, mas que depois perde sua relevância no inverno da existência.
      E depois? Para mim o que resta é esperar pelo último do Woody Allen, que passou dos oitenta anos, mas que continua lançando um filme por ano há cinquenta anos, esse artista, contudo, logo, logo se vai, e aí nada mais me restará para esperar.

domingo, 28 de fevereiro de 2016

__"Diga lá coração" (Gonzaguinha)


      As composições de Gonzaguinha me emocionam demais, letra e melodia, não com os ranços intelectualizados de outros compositores da MPB, mas de um jeito mais simples, e ainda assim profundo, falam sobre a vida e relacionamento homem-mulher, eis aí um talento que precisa ser mais revisitado nos dias de hoje onde a música se tornou tão superficial e frívola. 

sábado, 27 de fevereiro de 2016

_Snatch - Porcos e Diamantes (Guy Ritchie/2000)

      Decididamente, Brad Pitt fazendo papel de freak é bem melhor que de galã, é assim em Doze Macacos e no Clube da Luta (em Queime depois de ler ele também faz um papel de mané divertidíssimo). Neste filme, dirigido e escrito por Guy Ritchie, Pitt está impagável como cigano, mas todo o elenco é ótimo nos papeis de membros de gangues diferentes brigando por poder em Londres, o filme tem algo que eu gosto muito, cruzamento de histórias diferentes, ao estilo de Pulp Fiction, recomendado!

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

Fruto amargo

      Amargo demais? É isso que temos pra hoje. Dizem que se não há algo bom a dizer, melhor ficar quieto, mas é assim, somente os frutos doces é que fazem bem? Ficar atirando ódio gratuitamente para todo lado, ninguém merece, nem os melhores amigos suportam isso. Contudo, podemos nos comprometer demais, acostumar ouvidos alheios com palavras meladas, então, quando a terra seca, quando a chuva não cai, quando a árvore morre e não dá mais frutos doces, os frutos acres, que surgem naturalmente da alma árida, podem não ser aceitos por quem mimamos com aquilo que acham ser o melhor de nós. Os espirituais dizem que devemos guardar o nosso pior em nós, que quando amargados, é mais prudente nos isolarmos e esperarmos a chuva cair, regar a terra, fortalecer a árvore, fazer nascer os frutos doces, blá, blá, blá. Contudo, algumas almas só sobrevivem plantando palavras, mesmo que os frutos não sejam aprazíveis à maioria, não à primeira vista.
      Os frutos raros nascem não em estações definidas, reguladas, consideradas normais, mas são produtos de tempos de exceção, de estações desequilibradas e irregulares. Esses frutos também não aparecem nas grandes plantações, territórios dos poderes deste mundo, mas em lugares secretos, entre montanhas cercadas de deserto, que guardam jardins exóticos, pequenos e exclusivos, lugares que poucos conhecem, e que menos ainda pisam, plantam e colhem. Então, que escolham, querem os comuns e enjoativos frutos adocicados, vendidos nas feiras por pouco, visto que muitos os oferecem, ou querem provar algo singular? Não, a boca não vai gostar assim de cara, e confundindo as metáforas, os ouvidos não vão entender na primeira vez, teremos que morder um pedaço menor, sentir nas várias áreas gustativas da língua, ou teremos que voltar a fita e ouvir as palavras de novo, um pouco de cada vez, talvez em velocidade mais lenta. O fruto raro na boca do amargo cria palavras únicas que soarão diferentemente nos ouvidos acostumados com o doce, mixando todas as metáforas já que estou sem paciência para alterar o texto.
      A alma é diferente do corpo, a carne pode passar a vida toda se alimentando das mesmas coisas, e se forem as coisas certas, sustentarão o organismo físico e o manterão saudável. Já a alma cresce na diversidade, quanto maior a pluralidade, mais a alma vê, se estimula, se aventura, caminha, toca, aprende e se amplia. O medo do diferente é o medo de viver, e não pense que para isso teremos de subverter princípios fundamentais, trair alianças tradicionais, não necessariamente. Para alguns, isso não é necessário, outros, todavia, que não se acorrentam a fundamentalismo e tradição, pagam preços caros, para mudar e mudar bastante, mesmo que seja só para ter certeza de que existem coisas que nunca mudam. As diferenças desafiam, nos fazem questionar, destroem o maior dos cânceres, o preconceito, enquanto as referências constroem portos, os preconceitos prendem à terra muitas vezes uma nave que nunca tocou as águas, mas que navegue sem temor a alma pelos mares de todos os conhecimentos que são nada mais, nada menos, que as outras almas, joguem os lastros fora, se esqueçam da âncora, deixem leve e solta a nau do coração.
      No final das contas nada é amargo, quando existe poesia, se não fosse assim, não nos encantariam tragédias e amores impossíveis cantados pelos menestréis que já viveram neste mundo e que habitarão para sempre nos corações apaixonados. Uma sala com uma cama é um quarto, mas com uma cama e um vaso com flores, é poesia, no quarto a gente dorme, na poesia a gente sonha. Oito horas de serviço na frente do computador, é trabalho, mas ouvindo música, pensando no ser amado, parando de vez em quando para falar de coisas boas com o colega, é poesia, com trabalho o corpo sobrevive, com poesia a alma transcende. Muitos querem tirar a poesia da vida, assim, limitam a existência a frutos doces e frutos amargos, bipolarização preguiçosa e enfadonha, a poesia encontra estética no deserto, acha relevância na exceção, colore os quadros da alma com paisagens míticas que acham sentido mesmo no que nenhum sentido parece fazer. A poesia é o que nos linka com Deus, não é o trabalho, não é o doce e o amargo, o eterno vai muito além de extremos que muitos arrogam ser no que a vida se resume, vai além do bem e do mal.
      O não que o mundo cospe em nosso rosto, abre a porta de um caminho muito mais extenso e belo que achávamos que o sim abriria, o espírito livre acolhe o não recebido e o esmaga com sua sede de viver, com sua teimosia insana em querer saber o que está por trás dos mitos. Não, não e não, batendo insistentemente contra o peito, adaga dos guardiões dos mistérios, que encerra? O sim encerra, acomoda-se, o não dilacera, escancara, abre, mas não sem força e mesmo com alguma violência, só existe progresso com desordem. Assim não se aprende conhecimento sem dor e como tal, quando é legítimo, é amargo, pode até ser agradável na boca, mas queimará coração e mente, consumirá, dissolverá uma substância para criar outra, nova mesmo que seja com elementos antigos. Nossa alma morre e nasce, quebra-se em mil pedaços e atraída por uma potência desconhecida amalgama-se e se transforma, a força motriz dessa fusão é a poesia, uma inclinação cósmica para a beleza, não a estética do sim, mas do não, da morte, da dor, do amargo.
      Aceite esse fruto, não, não te amo menos por ele ser amargo, ao contrário, ele me é mais caro que todos os doces que já te dei, os doces dei porque me sobravam, não me faziam falta e não me custaram muito. Quanto ao amargo, ah, tirei do fundo de minhas entranhas, gerei no sofrimento, me custou dizer não a sins dos hipócritas, falsos, hereges e de torpes ganâncias. Esse fruto, amargo como é, creia, é o melhor que já dei, o mais raro e sincero, não parece bonito, não será agradável, mas eu tenho certeza, depois de comê-lo, de permitir que sua alma o integre com tudo o que você é, o resultado será inesperado. Será bom? Será ruim? Será diferente, levará você a questionar, a abrir a porta que está depois da porta, você achou que bastaria entrar por uma porta e se acomodar num quarto pequeno e vazio? Pois bem, no fundo do poço tem um alçapão, dentro do quarto tem outra porta, para onde dará essa porta? Não sei, isso é com você, só não tenha medo de provar esse fruto que te dou, um fruto amargo.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

__"Never can say goodbye" (Joey DeFrancesco)


      Um gênio do jazz organ atual interpretando uma das canções mais lindas de Michael Jackson, simplesmente sensacional.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

_Clube da luta (David Fincher/1999)

      Filme baseado em romance de Chuck Palahniuk, publicado em 1996, sem spoilers pra quem ainda não viu, só posso dizer que é um drama psicológico num contexto de violência não gratuita com um final surpreendente, veja. 

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Pássaro ferido

      Sinto aquele gosto etílico apodrecido na boca, por algum tempo não fui eu, mas a substância que me anestesiava, hoje quero parar, preciso parar, preciso sentir dor. As substâncias que injetamos em nossas veias para aliviar nossa angústia, acabam por nos privar da dor, direito exclusivo e terminal dos vazios. Mas se eu não sentir dor, o que sentirei? Quero esse direito, pelo menos esse, você foi embora, desistiu de me deixar ser eu, tudo o que eu queria era ser você.
      Espelhos, espelhos, reflexos de imagens refletidas, a tentativa de se refletir obsessivamente o outro desgasta o original, diminui a verdade, até que ela seja só um vulto distorcido distante de tudo, como o que se sente sob o efeito das substâncias. Agora preciso estar lúcido, tenho saudades da dor antiga, aquela que me fazia levitar, beber das canções e da poesia o elixir mais raro, como eu me sentia vivo, o sangue corria quente nas veias. Mas ele foi esfriando, o vermelho tornou-se cinza, aguado, o que queimava doía, mas me movia, o líquido gelado misto de vodca barata e água de torneira que enche minhas veias agora só me mantém em pé, morto-vivo.
      Preciso de você, das tuas mentiras, as verdades mais reais que já provei, e que só foram mentiras porque eu não tive paciência para esperar, promessas que morreram antes de criar raízes, folhas que se secaram, antes das flores se abrirem. Preciso muito de você, volta, me deixa sonhar novamente, acreditar que daqui a mil anos eu vou ver o sol, mil anos parece muito? Não era, quando eu tinha sua companhia, quando você me entretinha com suas histórias, seus personagens, mesmo nos finais infelizes eu era feliz, mesmo nas tragédias eu achava encanto, canto, me espantava com teus meandros, e debaixo de teu manto, eu dormia, acalentado por teus contos.
      Hoje vivo um segundo de cada vez, e como são longos. Alguns segundos e passa um dia, mais alguns e já se foi a noite, e são todos iguais, gota a gota minha vida se vai, gotas frias do meu sangue cinza e gelado.
      A cidade, ah, a cidade, já foi tão mágica, principalmente em final de outono, o vento frio, e esse frio, sim, era delicioso, batia em minha pele quente e me causava arrepios, eu via rios de espíritos fluindo ao me redor, me levando, me revelando. Quantos segredos me contaram, o invisível era meu cúmplice, invisível para os outros, não pra mim, ele era colorido, tanto quanto o negro azul pode ser, com olhos brilhantes de diamantes cósmicos. Eu inventava que viveria para sempre, me afogava nos livros, nos historiadores, filósofos e psiquiatras, eles tinham o que minha alma mais queria, não os mercadores, não os arquitetos, não os sacerdotes, na verdade era eu o sacerdote de uma religião de um só seguidor, meu reflexo.
      Agora só me resta o gosto etílico apodrecido em minha boca, substância que cozinhou o templo, queimou os móveis, descascou as paredes que eram revestidas com finas lâminas de ouro, os tijolos estão aparentes, gastos, e os objetos sagrados foram roubados, aqueles que sempre desejaram meu mal, mas que temiam você, quando me viram sozinho, entraram, quebraram e saquearam tudo.
      Volta, pra dentro de mim, reconstrói o que eu desprezei, eu tinha tudo, e me achava pobre, mas você estava comigo, então eu era rico. Fui tolo? Não, não negociei tuas coisas, meus mais caros tesouros, com a alma negra de terno branco, esse sim tem pele fria, mas nem sangue ele tem, cheira parafina, e mesmo frio deixa o ar sufocado, quente e rarefeito quando passa. Quem levou meus tesouros, nem noção tem do que tem nas mãos, deve ter largado em algum canto, um lugar onde tua providência protege aquilo que eu tenho de mais precioso.
      Se você voltar, sei que trará tudo o que perdi de volta, então, me livrarei dos espelhos, desses portais mágicos imundos, seduções mentirosas de quem não pode criar nada, só plagiar. Então me verei como sou e você achará o que sempre procurou em mim, eu mesmo, aquele bebê que já nasceu amaldiçoado pelos homens, mas que você cuidou, disputou entre os abutres, entre os de alma púrpura e roupa azul escuro brilhante.
      Pássaro branco, pousa em minha mão, eu prometo que fico bem quietinho, sei que você é sensível, que bate as asas com qualquer movimento estranho, a mínima violência você percebe, o menor sinal de mágoa te assusta, a sujeira mais elaborada, disfarçada e incensada, não te engana, o cheiro ruim chega às tuas narinas e você se vai. Mas eu preciso de você, só você pode tirar esse gosto etílico apodrecido de minha boca, só uma gota, uma gota do mel que você traz em seu bico e eu viverei, poderei sonhar novamente, terei forças para esperar com calma por mais mil anos.
      Se você adoçar minha alma poderei andar, sentir o vento do mundo no rosto chocar-se com o sangue vermelho, quente e vivo em minhas veias, sim, porque a gota de mel que você colocará em minha boca fará reviver meu corpo. Pássaro branco, que não é pássaro e cuja clareza é mais limpa que qualquer branco que olhos humanos já viram, mas que se deixa ser visto assim, como um pássaro comum, simplesmente por gentileza, por elegância, para não complicar as coisas mais do que já são, pássaro ferido, eu peço a você, volta pra mim e me leva contigo.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

__"Lay down your guns" (Emerson Lake & Powell)


      "Lay down your guns I come in peace, no need to run my friend into the trees, we've been through this so much before, but still we get it wrong. Lay down your guns and feel no regret, life is too short my friend, best we forget, no matter how we rise and fall and how our love is torn. We'll stand up high above the storm and still our passion calls, and the juices fall like rain from the sky. We have to understand we're the flame, that feeds our desire, God knows we must survive".

domingo, 21 de fevereiro de 2016

_Big Fish (Tim Burton/2003)


        Baseado no livro "Big Fish: A Novel of Mythic Proportions", de Daniel Wallace, com Ewan McGregor, Albert Finney, Billy Crudup, Jessica Lange e Marion Cotillard, Helena Bonham Carter, Matthew McGrovy e Danny DeVito. A obra de Tim Burton está naquela categoria de arte que gosto simplesmente por ter a assinatura dele, seja qual filme for, bom ou considerado ruim, aliás esse diretor amargou muitos fracassos de público imediato, mas toda sua obra é cult pra mim, estética única que basta ver uma imagem para saber que é dele, esse filme em especial tem uma poesia que me toca, um contador de histórias, não entendido pelo filho, é o contador um mentiroso? Sim, o artista mente, mente sempre, que nem sente, mas mente para tornar a vida encantadora, contudo, há mais verdades nas fantasias do artista que na realidade de muita gente.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

O sentido da vida

      - Qual o sentido de tudo isso, por que estamos aqui, onde isso vai dar?

      Um homem cansado da vida, desanimado de tudo, procurou um sábio e desabafou, o sábio, que conhecia todos os caminhos e todas as verdades, pôs-se a falar com ele.

      - A vida é assim, deserto e pedras, mas lá no alto daquela montanha existe um jardim, repleto de árvores frutíferas, no meio dele passa um rio, de águas calmas, limpas e frescas. Lá se colhe o alimento com as mãos, se bebe a mais pura das águas sem esforço, e se tem tempo para meditar, fazer poesia e amar.
      - Não aguento mais este lugar seco, tudo é enfado e sem gosto, o amor das mulheres é difícil e sem graça, a amizade dos homens é falsa, temos que plantar e esperar meses para colher grãos que duram alguns meses, pra depois começarmos tudo de novo. A água é pouca e amarga, retirada do fundo da terra com muita lida, os poços secam em pouco tempo, novos têm que ser cavados, com frequência, num trabalho sem fim.
      - Esse é o preço que pagamos por desobedecer ao senhor da terra.
      - Desobedecer? A única coisa que fizemos foi querer saber, nossos pais enjoaram de viver dentro do castelo do senhor, queriam conhecer o resto do mundo. Lá éramos alimentados, sim, de fato, mas ninguém sabia de onde vinham água e comida, nos eram trazidos por uns poucos escolhidos, únicos que tinham conhecimento do jardim da montanha, uma elite sacerdotal. Mas quem pode calar a curiosidade humana?
      - A curiosidade tem seu preço, queríamos conhecer o mundo? Pois bem, o senhor nos deixou partir, mas agora é cada um por si, o jardim permanece lá em cima, proibido a todos nós.
      - Muita gente já tentou chegar até lá, mas a montanha não pode ser escalada, então ficamos todos aqui, olhando-a.
      - É preciso ter fé, a montanha vai nos ouvir e nos deixar subir, salve a montanha.
      - A montanha é terra e pedra, não pode nos ouvir.
      - Sob ela está o paraíso, através dela flui a energia da terra, nela os deuses do universo tocaram com os pés este mundo, milhares de anos atrás, e deixaram sua provisão de vida e de conhecimento aos homens.
      - Não acredito nisso, o senhor da terra é a quem devemos rogar por misericórdia, ele é o dono de tudo.
      - O senhor da terra não é visto desde que os homens saíram de seu castelo, alguns dizem que ele já morreu, outros acreditam até que ele nunca existiu. Sempre fomos párias, seres errantes e solitários, vagando por esse deserto sem fim. Os de espiritualidade superior, e conhecedores dos mistérios, dizem que o jardim é a essência da montanha, nele reside o poder de sustentar todas as coisas, ele é deus, casada com a deusa terra, na montanha só acreditam os iniciados e de pouco conhecimento.
      - Vou até o castelo, vou procurar o senhor, ele me ouvirá, ele pode me mostrar como subir a montanha.
      - Alguns creem que o castelo é um lugar mágico, sua construção encerra os segredos do cosmo, o formato circular dos muralhas, a torre triangular, mas dizem que existe um polígono de cinco lados no subterrâneo do castelo que cria e sustenta as almas de todos os homens.
      - Não acredito nisso, o castelo é terra é pedra, não existe nenhum mistério por lá, o senhor da terra é o sustentador de tudo, criador de todas as coisas, vou falar com ele.
      - Você vai numa empreitada que muitos foram e desistiram, outros morreram tentando, tantos só perderam tempo e não conseguiram nada, ficaram ainda mais céticos.
      - Eu vejo o castelo, vou em direção a ele.
      - Todos veem, mas chegar até ele é que é a questão.
      - Vou conseguir.

      O homem não entendeu o sábio, não ficou claro se ele queria ajudá-lo ou não, se sabia de algo e queria ensiná-lo, se sabia mas escondia algo, se não sabia, mas inventava um monte de coisas, para não perder seu status de sábio. Mas ele estava decidido, iria até o castelo falar com o senhor da terra. O homem deixou sua família com alguma provisão de comida e água e foi, caminhou por dias, sozinho, dias quentes e noites frias e ele ainda tinha os olhos fixos no castelo do senhor da terra, gigantesco, que podia ser visto por todos, só era menor que a montanha com o jardim, que ficava bem atrás do castelo. Contudo, em um determinado momento, o homem se cansou, achou uma árvore, sentou-se, encostou-se no tronco dela e adormeceu, então teve um sonho.
      Ele via um mercado, diversos vendedores, cada um querendo falar mais alto que o outro anunciando seu produto. Eles vendiam, todos, frutos parecidos com tomates, contudo, não tinham a cor do tomate. Havia azuis, verdes e até pretos, em tons variados, tinha até alguns com cores parecidas com o vermelho do tomate original, rosa, violeta, mas nunca exatamente igual. Ele caminhava pelo mercado e ficava encantado com a maneira como os vendedores ofereciam os frutos, alguns eram mais sérios, buscando em argumentos científicos vantagens para seus produtos, outros mais carismáticos, argumentavam que seus frutos eram mais saborosos, mais bonitos. Seduzido pelos vendedores, ele comprou, um fruto de cada, então sentou-se num lugar, fora da cidade, e pegou um dos frutos para comer, ele estava com muita fome. Quando tocou no fruto, suas mãos ficaram sujas de tinta, o tomate azul, não era azul, era pintado de azul, mas na verdade nem era tomate, era uma pedra, trabalhada por escultores, fria e dura, não podia servir de alimento. Então, ele tomou outro fruto, o mesmo ocorria, uma tinta verde, negra ou rosa, sujava suas mãos e por baixo das tintas, pedaços de pedra, torneadas por algum escultor habilidoso, mas que não podiam alimentar o homem em sua fome.
      Revoltado com os embustes, ele jogou os frutos de pedra longe, quando as pedras caíram ao chão, elas se quebraram. De dentro das pedras saíram pequenos repteis, pareciam cobras, mas tinham pés e cabeças adornadas com penas coloridas. Os tais animais falavam, tinha sabedoria, tinham astúcia, um falava da montanha, outro do jardim, outro ainda do castelo, nenhum deles falava do senhor da terra. Por alguns momentos ele ficou hipnotizado pela beleza dos animais e por suas palavras, e entorpecido por tantas verdades e mistérios, assim ele se pôs de pé e começou a caminhar. Andou em direção ao lado oposto da montanha, foi até o fim do mundo, próximo ao abismo, quando quase dava o último passo, que o lançaria para fora do mundo, uma mão tocou seu ombro e ele foi acordado do torpor. O homem olhou para trás e viu, uma luz muito forte, não conseguia discernir o rosto de quem era, mas ouviu uma voz que dizia: "não busque na criatura o que só o criador pode dar". Ele acordou de seu sonho, era de manhã, uma brisa revigorante bateu em seu rosto, e no chão, havia um vasilhame com água e três frutos, tomates verdadeiros, vermelhos e frescos, ele comeu um dos tomates, bebeu um gole da água e continuou sua viagem.

      Ele andou mais um pouco, o castelo estava ficando maior, então viu, entre ele e seu destino, alguém que vinha em sua direção. À medida que foi se aproximando, foi entendendo quem era, era humano, uns trinta e poucos anos, todo de branco, cabelos loiros e muito alto. A princípio ficou com medo, mas continuou andando. O gigante então parou, a uns dez metros dele, ele também parou.
      - Sei o que você procura - disse o gigante.
      - Sabe?
      - Eu tenho o caminho para o jardim.
      - Eu procuro o senhor da terra.
      - Mas você deseja que ele te mostre como chegar ao jardim.
      - Sim, antes tenho que subir a montanha.
      - Você não precisa subir a montanha para chegar ao jardim.
      - Não?
      - Não, siga-me.
      O gigante não se afastou do castelo, mas também não se aproximou, ele foi pela esquerda e seguiu dando volta pelo castelo, manteve-se na mesma distância do castelo, mas andando em círculo. O homem seguiu o gigante, mas com os olhos fixos no castelo, ele pensou, "estou tão cansado que nem me importo com a ajuda, o importante é que estou vendo o castelo, não o perderei de vista, ele é o meu destino". À medida que caminhava, pela esquerda, o homem foi ficando mais e mais cansado, ele não se afastava de seu objetivo, mas também não se aproximava dele, contudo, naquela circunferência infinita, quanto mais caminhava, menos se movia, e mais atordoado ficava. Então ele parou e gritou ao gigante:
      - Quem é você?
      - Um guardião - disse o gigante com em um tom de voz calmo e seguro.
      - Guardião do quê?
      - Do castelo.
      - Por que o castelo precisa de guardião?
      - Vamos continuar, já estamos chegando.
      - Não estamos não, a não ser por alguns metros, parece que não saímos do lugar.
      - Vamos continuar, você não está vendo o castelo?
      - Estou.
      - Isso não basta?
      - Não, quero chegar até ele, não somente ficar olhando.
      - Sabe que ninguém chegou tão perto como você chegou?
      - É verdade?
      - Sim.
      - Sigamos em frente.
      - Não, não posso - algo estava errado, o homem não estava em paz, então, como que num piscar de olhos, o gigante, que até então se mantinha longe do homem, se aproximou, bem perto. O homem viu o gigante abaixado, com as mãos no final de longos braços sobre seus ombros, com os olhos, enormes olhos, olhando para ele. Aterrorizado, o homem percebeu, que apesar de parecer um ser de luz, visto suas roupas e cabelos brilharem mais que o sol, seus olhos eram negros, nem tinham as partes brancas, eram totalmente escuros. O homem também percebeu uma coisa, a face do gigante, mesmo no meio dos longos cabelos claros, e sem sinais de expressão, era a sua própria face.
      - Agora é tarde, terá que me seguir - disse o gigante, dessa vez com um tom de voz diferente, havia algo de ruim e violento em suas palavras.
      - Quem é você?
      - Já disse, um guardião - o gigante parece que estava perdendo a paciência, suas roupas agora não eram tão alvas, acinzentavam-se, assim como seus cabelos.
      - O senhor da terra não precisa de guardiões.
      - Eu não protejo o castelo.
      - O que você protege, então?
      - O conhecimento.
      - Que conhecimento?
      - Vocês homens são patéticos, e absolutamente não se conhecem, - agora não era mais um homem alto que falava, mas um deus - primeiro vocês querem saber, coisas que aos encarnados é proibido saber. Vocês se rebelam, traem aquele que lhes dá sustento, em troca do quê? De conhecimento, conhecimento que nós lhes oferecemos de graça. Então, depois de ganharem liberdade, vocês querem voltar à prisão? Vivam a vida, usufruam da liberdade, usufruam do conhecimento. A vida parece dura? Usem o que sabem para saberem mais, mudem o mundo, dominem o planeta, depois o universo, sejam deuses.
      - Não entendo o que você fala, mas suas palavras não me fazem bem.
      - Agora não fazem, mas já fizeram.
      - Não gosto de você.
      - Não gosta? Você o trocou por nós, desde então nos adoram.
      - Vou voltar ao meu caminho, segui você não está me levando a lugar algum.
      O guardião se enfureceu, agora era um gigante todo negro, e seus olhos, que eram negros, agora se tornaram vermelhos, ele gritou e os céus se fecharam, raios riscaram o firmamento e trovões muito fortes abalaram a terra. O homem simplesmente virou as costas e se foi.
      - Volte aqui, - gritava o gigante enfurecido - você não pode nada sem nós.
      Por um instante o homem virou-se e viu, no céu, agora não era um, mas quatro, quatro seres negros, que se afastavam como se estivessem sendo sugados por uma força maior, eles se debatiam, como que sentindo muita dor, mas o homem continuou, voltou ao ponto onde tinha visto o gigante a princípio. Então ele se sentou, exausto, e fez algo que nunca havia feito, falou com o senhor da terra, falou em seu coração, sem vê-lo, mas crendo em sua existência: "se o senhor existe de fato, me leve até o castelo, por favor". O homem respirou fundo, comeu o segundo dos três frutos que tinha, bebeu mais um gole d´água, pôs-se de pé e continuou, em linha reta em direção ao castelo.

      Não lhe restavam mais forças, não lhe restava mais esperança, não lhe restavam mais qualquer ilusão ou gratificação internas que lhe dessem energia para seguir, mas ele seguiu, com uma pequena, quase insignificante porção de fé. Não, não era por que ele acreditava em si mesmo, não era porque tinha algum mérito espiritual pessoal, não, ele tinha em mente o senhor da terra, aquilo que sua consciência humana, aquilo que sua história tinha forjado dentro dele como sendo o criador de todas as coisas. Sua fé era pequena, mas enfim, era genuína, não havia vaidade, conveniência ou qualquer desejo de barganha, de querer dar algo ao senhor da terra para que ganhasse outra coisa, ele apenas cria que poderia achar o criador de todas as coisas e pedir a ele por misericórdia.
     Então, ele se viu, de frente ao castelo, nunca ninguém havia chegado até aquele ponto, as majestosas portas do castelo, ele era lindo. Construído de pedras brancas, todas do mesmo tamanho, os muros não eram em formato circular, como muitos diziam, a construção externa era um retângulo, com os lados maiores na frente e atrás. O homem não entendeu, mas as portas estavam abertas, ele então entrou. Dentro dos muros havia uma construção quadrada, e sobre o grande cubo, uma torre, cilíndrica que subia acima dos muros, também não havia nenhuma parte em formato triangular, ou piramidal, sobre a torre, como alguns acreditavam. Na verdade, nada do que diziam, era verdade, símbolos com significados secretos, imagens ou esculturas de animais míticos, não, era tudo muito simples, simples até demais.
      O homem andou ao redor do cubo, parecia ser um salão com uma parte térrea e um andar superior, sendo que havia uma larga janela em cada lado, ao que ele entendeu, no andar superior do cubo. Só havia uma porta, pequena, no lado da frente, a torre cilíndrica tinha a mesma medida até o alto, onde parecia existir um terraço aberto, com quatro aberturas. O homem voltou à porta do cubo e entrou no salão, estava escuro, mas havia tochas apagadas nas paredes, ele riscou duas pederneiras que tinha e acendeu as tochas, uma a uma, até que todo o lugar ficou iluminado. Ele ficou maravilhado com o que viu, toda a sala era uma enorme biblioteca, com prateleiras em todas as paredes, repletas de livros, contudo, havia somente duas cadeiras, uma à esquerda e outra à direita. No centro da sala uma escada em espiral dava acesso ao andar superior.
       Ele correu para as prateleiras, queria saber o que eram aqueles livros. O homem perdeu a noção do tempo, mesmo porque lá dentro o tempo não existia, mas ele abriu um livro após outro, não deu tempo de ler nada por inteiro, mas o que ele queria saber era do que se tratavam os livros, que assuntos estavam registrados neles. Havia de tudo, história natural, com descrições detalhadas sobre animais, sejam da água, da terra e do céu, com desenhos e extremamente bem feitos, tanto sobre o exterior quanto do interior, da mesma maneira havia catálogos da vida vegetal, plantas, árvores, ervas, comestíveis ou não, tudo com desenhos minuciosamente produzidos e coloridos. Havia também livros de engenharia, esquemas de máquinas para levar água dos rios para as cidades, projetos de encanamento e saneamento urbanos, tratados sobre higiene, iluminação com óleos combustíveis refinados de um líquido preto que vertia em algumas regiões, e que ele não conhecia. Mas tinha mais, máquinas de tecelagem, descrição de processo de curtição de couro, até receitas de remédios produzidos de plantas e minerais.
      Contudo, o homem não encontrou o senhor da terra, o lugar estava vazio, então ele pensou, deve estar no andar superior. Subitamente largou os livros e correu para a escada, no centro da biblioteca. Pegou uma das tochas e voou pelas escadas, o andar superior era mais iluminado, as janelas deixavam que a luz solar entrasse no ambiente. Contudo, esse andar estava vazio, não havia nada nele, nem livros, nem móveis, nem tochas havia nas paredes, apenas no centro, a escada circular que seguia, pela torre acima do grande cubo. O homem foi até a janela da frente, dava para ver fora do castelo, um deserto sem fim, lá na frente, estava sua cidade, ele sentiu saudades da mulher e do filho, ele sentiu saudade de sua vida comum, simples, do seu dia a dia, ele sentiu saudades de ser só um homem, não um viajante solitário, procurando pelo criador de todas as coisas. Ele permaneceu na janela até o entardecer e viu o por do sol mais belo que já havia visto. Daquele lugar, exatamente naquele ponto, na janela da frente do andar superior, sob as muralhas, ele se sentiu parte de algo maior, sentiu que algo muito especial estava acontecendo, e se perguntou: "por que comigo, quem sou eu para merecer tudo isso? Não sou melhor que nenhum outro homem".

      Então ele se voltou, e com a tocha na mão começou a subir a escada da torre. "Lá em cima, será? Será que o senhor da terra está lá?" Ele se perguntava, mas não tinha pressa, não mais, degrau por degrau pisou lentamente, como se a cada passo que subisse, ele confessasse seus erros, seus males, seus egoísmos, suas ingratidões, sua incredulidade, sua humanidade, mas ele não se arrependia só por ele, mas por todos os homens. Ele lembrou das palavras do sábio, agora ele sabia, era um falso sábio, ele se lembrou do sonhos, das bestas que saíram das pedras, ele se lembrou das palavras que o motivaram a seguir, "não busque na criatura o que só o criador pode dar". Ele se lembrou do gigante, dos guardiões não do conhecimento, mas da mentira, já que o homem, como muitos maldosamente diziam, não estava preso no início num lugar sem conhecimento, mas naquela biblioteca havia todo o tipo de ciência. O que mais o homem queria saber, por que tinha se rebelado contra o senhor da terra, o que o homem tinha visto de tão interessante na proposta de conhecimento dos gigantes?
      Finalmente ele chegou, se desse mais um passo sua cabeça estaria fora da parte fechada da torre e alcançaria o topo, a parte aberta, o lugar mais alto do castelo, onde deveria estar a resposta de sua pergunta sobre o sentido da vida, o próprio senhor da terra. Ele parou, abaixou a cabeça, fechou os olhos, curiosamente a tocha se apagou, agora ele estava absolutamente sozinho, num silêncio que chegava a machucar seus ouvidos, como se não existisse no mundo mais ninguém além dele.
     Ele deu um passo, já podia ver o chão do topo da torre, estava claro, iluminado por um céu absurdamente ponteado de estrelas e da maior lua que ele já havia visto, olhou, olhou, e não viu ninguém. Triste ele terminou de subir, caminhou pelo lugar, de lá dava pra ver todo o planeta, a montanha estava atrás. Debruçou numa das aberturas, na outra, na outra então foi para a frente. Ficou algum tempo ali, parado, contemplando a terra, o céu, a si mesmo, ele esvaziou-se, mais ainda, não havia mais nada a dizer: o senhor da terra não existia, era tudo uma grande fantasia, algo em que as pessoas acreditavam para continuarem vivendo, algo que muitos vendiam, para se aproveitar da fé alheia. Mas as coisas não batiam, não podia ser isso, ele tinha tido experiências sobrenaturais durante seu trajeto até o castelo, o sonho, o gigante, não, havia algo, algo que ele ainda não tinha entendido.
      O homem foi para o centro do lugar, sentou-se no buraco circular que dava acesso à escada, não queria olhar mais para cima, não existia nada lá em cima. A montanha? Era mais uma ilusão. O jardim devia estar abandonado, morto, seco, como tudo no mundo. Com os olhos fechados e com as mãos na cabeça, ele chorou, amargamente, chorou lágrimas que nem existiam mais, subiram de um coração ressecado com tanta decepção. Então, leve, ele abriu os olhos, a luz do luar batia bem no primeiro degrau da escada, assim ele viu, escrito no degrau, uma frase: "amarás a Deus acima de todas as coisas". Ele se assustou, mas baixou a visão e olhou o próximo degrau, estava escrito, "amarás ao próximo como a ti mesmo", o que estava acontecendo? Ele havia subido a escada, tão ocupado em achar algo dentro de si que não tinha visto, ele olhou o terceiro degrau e também havia algo escrito. A tocha que havia se apagado estava lá, com as pederneiras ele tornou a acendê-la e viu, em cada degrau havia algo escrito.
      O homem desceu a escada, eram cento e quarenta e quatro degraus, voltou ao térreo e procurou, procurou, queria papel para anotar as frases dos degraus, mas não achava nada em branco, eram livros e todos estavam preenchidos com textos. Então ele foi até a porta e achou, logo a esquerda, na primeira posição da prateleira mais baixa, um livro, diferente de todos os outros, ele estava com as páginas em branco. Juntos, amarrados ao livro com barbante, lápis de carvão, sete deles, alguém, de alguma maneira havia previsto aquela situação, tinha deixado para ele material para que registrasse o texto escrito nos degraus. Ele o fez, subiu novamente e começou a anotar, a partir do degrau mais alto, uma frase em cada página do livro, o livro tinha exatamente cento e quarenta e quatro páginas. Quando o homem acabou, estava cansado, lhe restava um último fruto vermelho, ele o comeu e bebeu o restante da água que tinha, assim adormeceu.

      O sol o acordou, entrando pelas portas do castelo, passando pela porta da biblioteca e atingindo seu rosto, ele precisava voltar. Ele se levantou, saiu da sala quadrada, passou pelas portas da muralha e antes de seguir, parou e olhou o castelo, queria vê-lo pela última vez. Foi exatamente isso que ocorreu, já que começando pelo topo da torre, a construção começou a ruir, a terra se abriu e engoliu tudo, a torre, a edificação quadrada e os muros. Quando o pó se assentou havia uma planície, nem uma pedra tinha ficado na superfície, tudo tinha sido engolido pela terra. Ele pegou o livro da mão e sorriu, aquelas cento e quarenta e quatro frases eram tudo o que havia restado do lugar onde os primeiros homens e o senhor da terra tinham pisado.
      A viagem de volta foi rápida, o caminho parecia menor, o sol ainda não havia se posto e ele já enxergava sua cidade, então ele parou, num pequeno monte, alguns quilômetros antes de chegar. Enquanto olhava o povo lá embaixo, arando a terral, cuidando da criação, vivendo sua vida normal, ele tentava entender o que havia ocorrido. Ouviu então, claramente, como sua própria voz, o senhor da terra falar com ele.
      - Filho.
      - Deus?
      - Sim, esse sou eu - pelo primeira vez ele chamou o senhor da terra de Deus.
      - O senhor da terra, criador de todas as coisas?
      - O único Deus.
      - Não te achei no castelo, também não subi à montanha, o jardim existe?
      - Existe.
      - Lá em cima?
      - Não, na sua frente.
      - Na minha frente tem a minha cidade, minha pobre cidade.
      - Sim.
      - Ela é o jardim?
      - Pode se tornar um.
      - Como?
      - Você tem um livro com cento e quarenta e quatro princípios, não, não se prenda a eles como leis, como regras rígidas que devem ser seguidas e cuja desobediência é sujeita à severa punição. Eles são princípios, que só serão realmente conhecidos, se depois de plantados nos corações das pessoas, derem frutos. Podem ser questionados, mas se isso for feito com sinceridade e respeito, serão entendidos ainda com mais profundidade, eles são o começo, não o fim, e levarão os homens que os viverem a transformar desertos em jardins.
      - Mas e o jardim original?
      - Aquele foi outro tempo, os homens fizeram escolhas, as coisas mudaram.
      - Então o Senhor vai nos punir?
      - Não, vocês se puniram, mas novas oportunidades sempre existem, se houver boa vontade, o livro que você escreveu é a porta para uma nova chance, para um novo jardim.
      - E todo aquele conhecimento que havia nos livros? Tudo se perdeu...
      - Não, toda aquela ciência está aí, dentro de cada homem e mulher de sua cidade, com tempo tudo aquilo será conhecido por vocês, e usado da melhor maneira para conquistar o mundo e o universo. O conhecimento nunca foi dos guardiões, eles foram usados para confrontar o homem com suas dúvidas, com seus valores, para que ele pudesse usar seu livre arbítrio.
      - Não posso fazer isso sozinho, ninguém vai acreditar em mim.
      - Eu estou contigo e vou te ajudar, mas não tente convencer ninguém com argumentos, viva os princípios do livro, ensine-os para sua esposa e seu filho, depois para seus parentes e amigos, sempre dando exemplo de prática maior que palavras ou teorias. O que você vai experimentar desse livro é maior que você, tem vida própria, te conduzirá para os melhores caminhos, em cada escolha que tiver que fazer, confie e fique em paz.

       Assim foi, na cidade do homem, o deserto se tornou jardim, contudo, não foram todos que acreditaram no livro, não foram todos que entenderam que o senhor da terra é Deus e que agora não anda mais fisicamente entre os homens, mas que é espírito e como tal mora no coração dos homens que permitem que isso aconteça. Alguns disseram que o homem tinha andado tempo demais pelo deserto, que o calor tinha torrado seus miolos, que ele estava louco e tinha inventado toda aquela história. Outros, com o tempo, até provaram os jardins, mas que depois se tornaram novamente em desertos, muitos fizeram guerras contra as cidades-jardins, e outros continuaram acreditando nos significados místicos do castelo, nas recompensas espirituais que obtinham os que se sacrificassem subindo a montanha, na crença espiritual de um jardim original e nos guardiões do conhecimento, como verdadeiros mensageiros da verdade. Mas enfim, o homem seguiu, com livre arbítrio, mas agora com o livro sagrado em suas mãos, o livro dos cento e quarenta e quatro degraus que um primeiro homem teve a coragem de escrever, depois de viajar sozinho e lutar contra si mesmo e contra os gigantes num deserto sem fim.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

__"Sailing" (Christopher Cross)


      "Foi lançada em junho de 1980 como o segundo single de seu álbum de estreia... A canção foi um sucesso nos EUA, ganhando o Grammy Awards de Gravação do Ano, Canção do Ano e Artista Revelação, e ajudando Cross a ganhar o prêmio de "Best New Artist". VH1 nomeou esta canção como o maior "softsational soft rock" de todos os tempos."    
      Curiosidade: "Ele começou nos anos 70, participando da banda de rock pesado Flash. Nesta época Christopher era uma espécie de herói da guitarra no Texas, o que lhe valeu a oportunidade de substituir Ritchie Blackmore em um concerto do Deep Purple. Ritchie ficou muito gripado e não conseguia tocar, mas o produtor e a banda resolveram fazer o show com o jovem guitarrista local.", dessa acho que você não sabia." Wikipédia     

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

_Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (Michel Gondry/2004)


      Com Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Elijah Wood, Mark Ruffalo e Tom Wilkinson, filme maravilhoso, ficção científica, suspense psicológico e narrativa não-linear, esses três elementos juntos num mesmo filme é tudo o que mais gosto, para ver mais de uma vez, com certeza.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Elo perdido

      - Um café.
      - Puro ou com leite.
      - Puro, por favor - se eu quisesse com leite teria pedido, não precisava perguntar.
      Lá vem ela, de vez em quando some, mas via de regra aparece por aqui, e senta-se sempre no mesmo lugar, nas mesas do fundo, à esquerda, de preferência na do canto, de óculos escuros, linda demais. Uma mulher assim, sozinha, não entendo, talvez seja agora, na tarde do sábado, com certeza é por opção, deve haver um monte de homens atrás dela.
      - Seu café, senhor.
      - Obrigado - do jeito que eu gosto, quentíssimo e forte, pra levantar minha tarde.
      O lugar é arejado, aberto, ventiladores e não ar condicionado, ambiente muito gostoso. O vento está batendo nos cabelos dela, cabelos finos, lisos, um castanho claro, quase loiro, mas tudo nela é perfeito, nariz afilado, lábios pequenos, mas bem cortados, parece projeto de Oscar, ela não é gordinha, mas também não é magérrima, um metro e setenta e pouco, seu DNA devia ser guardado no Smithsonian. Irrita-me esses caras que trazem notebook pro Café, uso o computador o tempo todo, aqui quero mais é olhar o mundo real, evito até abrir celular, dificilmente peço senha de wi-fi. Ela está olhando o celular, é perfeita, mas ainda é mulher, um defeito? Sei lá, gays também não se desligam do celular, falando em gay, lá vem o Benjamim.
      - Maurício, tudo bom?
      - Tudo ótimo, senta aí.
      - Mas é rápido, só vim tomar um café, nem almocei.
      - E aí, trabalhando muito?
      - Tem Casa Cor na semana que vem, simplesmente não vai dar tempo de fazer tudo.
      - Você diz isso todo ano.
      - Mas agora é verdade, Mau - esse cara, sempre me faz rir, adoro o jeito deles, tudo é sempre dramático, eles não vivem a vida, eles atuam, e sempre com muita elegância.
      - E sua chefa?
      - Aquela sapatinha é terrível, ainda mais quando está sem namorada, desconta tudo em mim.
      - Ela é competente.
      - Também, com quase sessenta, acho que aprendeu alguma coisa, né?
      - Tem gente que vive e vive, e nunca aprende, sempre repetindo os mesmos erros.
      - Seu café, senhor.
      - Obrigado, lindo.
      - Você deixou o garçom sem graça.
      - Mas ele é lindo mesmo - Ben não tinha muitos filtros, não era promíscuo, apenas carente, aliás, acho que promiscuidade não existe, não como defeito moral, é apenas carência em busca de soluções equivocadas. Todos, porém, somos carentes, a diferença é que alguns não admitem que são, as carências movem o mundo, mudam governos, fazem guerras.
      - Já vou, beijo.
      - Até mais Benjamim - um judeu gay, é muita identidade para um ser só, sou privilegiado por ter um amigo assim, consegue viver de decoração porque nasceu num meio onde todos têm dinheiro para consumir isso, seus clientes são seus parentes e amigos da infância. Mas quem é aquele camarada sentado com ela?
      A conversa não parece amistosa, ele é grandão, desses riquinhos que passam o dia em academias queimando o cartão de crédito do pai. Ela tirou os óculos, é impressão minha ou está chorando? Está sim... limpou o rosto com os lados das mãos... ele pôs a mão não braço dela, ela tirou, as coisas não estão bem naquela mesa... ele se levantou, está vindo pra cá, ela vem atrás dele, cabeça baixa, deve odiar escândalos, é fina demais pra barracos... ele esbarrou na minha mesa...
      - Desculpe-me, amigo - que amigo mais sem amigos, amigo da onça, isso sim.
      - Não foi nada - ela passou... olhou pra mim, a vi sem os óculos, seu olhar perfurou minha alma, uma beleza solitária... saíram da Café.

      O dia está claro, céu limpo, o outono faz seu prelúdio para a estação mais fria, gosto demais desse momento do ano.
      - Garçom, por favor, aquela moça que saiu com o cara, sabe o nome dela? - cometi uma dessas minhas impulsividades que sempre fazem com que eu me arrependa depois.
      - Ana Clara, é filha de um usineiro rico da região.
      - E o camarada?
      - Outro herdeiro de usina de açúcar, noivo dela, Marcos.
      - Ok, obrigado - nunca vi esse cara no Café.
      Não vou sair daqui tão cedo, ir pra onde? Trabalho em casa a semana toda, quero ver gente. Aquelas duas senhoras também estão sempre por aqui, mas será que com tanta mesa vaga elas vão querer sentar logo perto de mim? Sentaram, e como falam alto...
      - Ela está com depressão - não tenho nada pra fazer mesmo, vou prestar atenção à conversa.
      - Verdade, Zuleica?
      - Síndrome de pânico, não sai de casa há semanas.
      - Também, sempre foi mimada, pelos pais e depois pelo marido...
      - Ex-marido, amiga, ele está na Espanha com uma mulher com idade pra ser filha dele.
      - Neta, pelo que me falaram - ambas já sabiam da história, mas falavam como arautos dos bons costumes, para que todos soubessem, de alguma maneira isso as fazia sentirem-se melhores, ou simplesmente colocava assunto nas conversas.
      - Dois cappuccinos com conhaque.
      - Pode caprichar no conhaque - elas cheiram cigarro, do que adianta tanta maquiagem? Peles esbranquiçadas, devem ser geladas, peruas.
      Enquanto bebem a conversa fiada para, ainda bem, mas é sempre assim, logo vão embora, não sabem curtir o ambiente, defuntas, não têm mais prazer na vida, só em matar os outros com as palavras, vou ler um pouco.

      - Garçom, me vê uma Stella Artois e uma esfirra.
      - Ok.
      - Dezessete horas, já estou aqui há quase três, tanta gente já entrou e saiu, os garçons estão acostumados comigo, o turno deles muda às quinze, mas eu continuo por aqui, vou aproveitar para ir ao banheiro...
     Este banheiro é tão limpo, que bom, estou sozinho, dá pra ter alguma privacidade... alguém entrou, um celular está tocando... "Marcos? É o Filipe, está sumido... o que é que foi?... calma, cara... tem certeza?... isso pode ser arranjado... conheço um cara que conhece um cara... deixa comigo, mas fica tranquilo, se a Ana Clara estiver te traindo a gente descobre e dá um jeito... vejo, vou falar com o cara, depois te retorno... que isso, amigo é pra essas coisas... abraço"... eu ouvi bem a história? Marcos, Ana Clara? Parecem ser a moça e o namorado, vou esperar um pouco, deixa o cara sair que eu saio.

      A cerveja e o salgado não caíram bem, também, comi às pressas, por que eu tinha que ficar naquele lugar tanto tempo? Se eu tivesse voltado pra casa antes, não tinha ouvido aquele telefonema. Um cara que conhece o cara, não pode ser só um detetive particular, é conversa de bandido, esses moleques mimados, não suportam nãos, e se o tal Marcos quiser usar de violência com a Ana Clara?

     Este Café fica num lugar da cidade meio longe do centro, não há nenhum shopping center próximo, contudo tem dois condomínios por aqui, um residencial, de alto padrão, e outro de escritórios, os frequentadores são assíduos e geralmente gente que mora ou trabalha perto. Tudo o que eles servem é mais caro, poucos pagam sete reais numa xicrinha de café ou quinze num salgado. Eles usam pós selecionados, importados, só coisa de primeira linha, acho que sou o sujeito mais pobre que vem aqui. Acordei encanado com a história de ontem, vim disposto a ficar de tocaia, vou permanecer aqui no canto, perto da porta, escondido nos óculos escuros. Vamos ver se os personagens aparecem, peguei um Dostoiévski, passar o tempo não vai ser tão difícil.
   
      Já li umas vinte páginas do russo, passa das treze e trinta, mas enfim chegou alguém, o Marcos e um outro cara, deixa eu disfarçar, vão passar por mim...
      - Fica tranquilo, Marcos.
      - Vaca.
      Não tenho dúvidas, não vi o rosto do sujeito, mas guardei bem a voz, é o mesmo do celular no banheiro, bem escroto ele.
      - Onde você quer sentar?
      - Pode ser aqui mesmo - acho que tenho imã, tinha que ser bem ao meu lado? Cara de paisagem, quero ficar invisível, vou entrar neste livro e sumir, ainda bem que sou pequeno, nem vão me notar, mas espera, vou fazer uma coisa, vou colocar meu celular pra gravar, aqui, em pé ao lado do açucareiro, está escondido, ninguém vai ver...
      - O cara seguiu-a ontem à noite.
      - Como assim, eu saí da casa dela meia-noite?
      - Meia-noite e pouco ela passou pela portaria do condomínio.
      - Onde ela foi?
      - On-Blues Bar.
      - Ela disse que estava cansada, que ia dormir...
      - Tinha um cara esperando por ela, ficaram por lá até as duas da madrugada, depois saíram.
      - Juntos?
      - Não, ela voltou pra casa sozinha.
      - Pega esse cara que estava com ela e dá-lhe um belo susto...
      - Como assim?
      - Umas pancadas...
      - Tem certeza?
      - Tenho - está tudo no meu celular, vou me mandar agora, não posso ficar aqui nem mais um segundo... droga, tropecei na cadeira, caiu tudo no chão...
      - Precisa de ajuda, amigo?
      - Não, obrigado - caramba, o amigo bandido do Marcos falou comigo... eles estão se levantando, vão embora, quer saber, vou ficar...
      - Fica tranquilo, acontece, em tarde de domingo está todo mundo de ressaca do sábado...
      - Eu nem bebi. Me vê outro café, por favor - quando a gente não precisa parece que todo mundo nos dá atenção.
      - Com leite?
      - Não puro! - cacete, eu não tomo café com leite, não num lugar desses...

      Quatro horas da tarde, estou mais calmo, mas preciso fazer alguma coisa a respeito.

      Quatro e meia, Ana Clara está entrando no café, vai ficar longe de mim, sentada lá no canto dela, está linda, mas o que se passa por baixo daqueles óculos, quem sabe? Cabelos presos, geralmente ficam soltos, legging preta, camiseta básica branca e rasteirinha nos pés, não se produziu muito pra sair, deve estar mal...

      Ela já tomou o café, daqui a pouco vai embora, tenho que aproveitar esta oportunidade, pode ser a última, vou até lá e conto tudo. Ela não vai entender, vai dizer, quem é você? Eu não te conheço, não acredito no que você está dizendo. Vou pagar o maior mico. Mas não posso guardar isso comigo, vou avisar, aí é com ela, farei minha parte. Mas ela está se levantando, vai embora, vem vindo pra cá...
      - Ana Clara? - ela não vai dar nem bola...
      - Sim? Eu? - que educada...
      - Você não me conhece, mas eu preciso falar com você.
      - Ah, tudo bem - ela está sentando ao meu lado, fantasiei isso tantas vezes...
      - Quer um café?
      - Não obrigada, acabei de tomar - de perto ela é ainda mais bela, que pele, não tem um milímetro de maquiagem, e como cheira bem...
      - Então... - congelei, esqueci o que ia dizer...
      - Sim?
      - É o seguinte... - quem sou eu?
      - Está tudo bem com você? - ela tocou minha mão, nunca mais vou lavá-la... preciso falar, vou direto ao ponto.
      - Meu nome é Maurício, Marcos é seu namorado, não é?
      - Sim, mais ou menos...
      - Sem querer ouvi uma conversa dele com um amigo, ele mandou segui-la ontem à noite, ele soube do seu encontro no On-Blues Bar e não gostou, vai mandar um cara pegar a pessoa que estava com você, acho que vão machucar seu amigo...
      - Meu Deus, mas como você sabe disso?
      - Eu gravei a conversa no meu celular, quer ver?
      - Sim - ela se aproximou de mim, para ver a tela, estou tremendo...
      - É o Danilo, o amigo dele, parece que é isso mesmo que você disse...
      - Sei que você não me conhece, mas por favor, acredite em mim...
      - Eu já vi você por aqui, aliás, várias vezes... - que sorriso maravilhoso...
      - Venho sempre aqui...
      - Bem coisa do Marcos, possessivo, mas não sabia que ele podia chegar a esse ponto.
      - Pega meu número, se precisar de alguma coisa, me liga...
      - Obrigada, vou ver o que faço.
      Ela está indo embora, com pressa, o que vai acontecer agora? Vou respirar fundo e pedir uma Stellinha...

      Na tensão do momento, nem percebi, mas em uma mesa bem ao meu lado, estavam as duas defuntas, quando me dei por conta e olhei pra elas, as peguei caladas, com as bocas abertas, com os olhos fixos em mim, assustadas. Não sei em que momento elas chegaram, mas parece que tinham ouvido tudo. A cidade está quieta, meu apartamento escuro, vou ler mais um pouquinho antes de dormir...

      Uma hora da manhã, quem estaria me ligando agora?
      - Alô? - o número não está sendo identificado pelo meu aparelho.
      - Alô, é Ana Clara, é o Maurício?
      - Sim... - que voz no meu ouvido, em minha cama, em meu quarto...
      - Obrigado por você ter me falado tudo aquilo.
      - Que isso, só quis ajudar...
      - Mas eu nem precisei fazer nada...
      - Por quê? O que é que houve?
      - A mãe do Danilo ouviu ele conversando com os caras que me seguiram e não gostou nada, ela já não estava bem de saúde, está numa crise de depressão brava, mas parece que o ocorrido foi a gota d´água, ameaçou de cortar a mesada dele, cartão, esses playboys só mudam de atitude assim, quando se veem sem grana...
      - Que mundo pequeno - eu disse com a certeza que a mulher com depressão da conversa das fofoqueiras era a mesma, mãe do mau caráter.
      - Como assim?
      - Digo, como você soube de tudo isso? - tentei arrumar o que eu tinha dito em voz alta pra mim mesmo.
      - Minha tia Zuleica me contou, aconteceu tudo agora à noite - não acredito, é uma das velhas defuntas...
      - Mas e o Marcos?
      - Eu o coloquei em seu devido lugar, o que faltava era eu me posicionar com autoridade com ele, ao invés de ficar me fragilizando.
      - Desculpe-me por invadir sua privacidade, mas não sei como alguém como você estava com um cara como ele.
      - Alguém como eu?
      - Sim, inteligente, educada, linda... - coloquei o linda no final da frase estrategicamente, na verdade, para um apaixonado platônico profissional como eu, inteligência e educação importam menos que beleza. Nós, nos apaixonamos pela deusa de mármore, quieta e à distância, sonhamos com algo que achamos que a deusa é, e que muitas vezes na realidade nem é. O objeto dos românticos covardes como eu são finos corpos de arte inflados com a ilusão da mulher perfeita, aquelas dos filmes de Hitchcock, das canções...
      - Acho que essa não sou eu... - ela sorriu.
      - Mas o Marcos não te ameaçou? -  tento voltar ao assunto.
      - A mãe do Danilo contou pra todo mundo sobre os amigos malandros que ele tem, falou para os pais do Marcos sobre as ameaças a mim, pelo menos foi o que a tia Zuleica me falou - e aconteceu tudo isso numa noite? A alta sociedade é um universo pequeno, em todas as cidades elas existem, na maioria das vezes, nós, das classes b e c, nem ficamos sabendo o que acontece no meia dela, seus membros se protegem, fazem escândalos como os que acontecem na classe média e baixa, mas escondem tudo debaixo do tapete.
      - E você, como está?
      - Vou aproveitar e fazer uma viagem, tenho uma amiga na Espanha, está lá com um novo namorado, vou encontrá-los - e o círculo se fecha mais uma vez, acho eu.
      - Desculpe-me por perguntar, mas e o seu amigo, o do On-Blues Bar?
      - Tadinho, é só um amigo, o Benjamim - como? Onde? Por quê? O Ben? Mas, mas, ele é gay? Tenho certeza, não está tendo um caso com a Ana Clara de forma alguma, que confusão, e eu no meio disso tudo. Entre todas essas pessoas, eu sou somente um elo perdido.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

__"Mutual Core" (Bjӧrk)


      Bjӧrk pode tudo, fazer todo tipo de loucura visual, por dois motivos: em primeiro lugar por fazer uma música modernista, pós-modernista, ou seja lá o que for, mas acima de tudo absolutamente livre, em segundo lugar porque letra, melodia e arranjo são usados em total interação com a imagem, sem se prender à nada, a não ser à arte, e uma arte deliciosa de ser consumida, Bjӧrk é única, é completa, um vídeo seu é pra ser apreciado em um museu famoso, em Paris, Roma, Londres ou Nova Iorque... quanto às "Lady Gagas" que existem por aí, se tirar o visual não fica nada além de músicas sem originalidade e qualidade que já foram esquecidas pela maioria das pessoas.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

_Parenthood (Ron Howard/1989)


      Ou "O tiro que não saiu pela culatra", comedia dramática com mega-elenco, Steve Martin, Tom Hulce, Rick Moranis, Martha Plimpton, Joaquin Phoenix, Keanu Reeves, Jason Robards, Mary Steenburgen e Dianne Wiest, uma família, vários filhos, várias histórias. (Alguns veem filmes pelos atores, eu gosto de ver pelos diretores, os bons são fieis aos estilos que têm, se um filme é legal, todos serão interessantes, Ron Howard é um diretor que recomendo, dirigiu "Apollo 13", "Uma mente brilhante" e "O Código Da Vinci", dentre outros).

domingo, 14 de fevereiro de 2016

Essência

      - Oi Roberto.
      - Oi.
      - Vai almoçar?
      - Vou.
      - Estava a fim de comida chinesa.
      - Também, vamos nessa.
      Juntos andaram mais uma quadra e chegaram ao restaurante chinês mais próximo. Depois de se servirem, sentarem-se e comerem, o silêncio incômodo lançava os olhares para outros lugares, algumas vezes se quer estar sozinho e não acompanhado.
      - Gosto da comida daqui, sabor forte, variedade - disse o amigo.
      - Você sabe que isso que chamamos de comida chinesa não é chinesa, né? - observou Roberto.
      - Ah, sim, é comida ocidentalizada, com alguns elementos da China, mas na China, de fato, eles não comem isso exatamente, seja como for eu gosto.
      - Eu também.
      Levantaram-se, pagaram as contas e voltaram, Roberto entrou em seu prédio, o outro Roberto seguiu mais um pouco até o seu prédio, de volta para o segundo período de trabalho. Era terça-feira, a semana mal começara.

      Roberto chegou em casa, o apartamento era minúsculo, banheiro e outro cômodo com cozinha e sala separadas por um balcão, ele dormia no sofá. O monitor de imagens era enorme, tomava quase a parede inteira, as placas finas de áudio revestiam todo o lugar.
      - Ano quarenta e um, mês quatro, dia vinte e cinco, vamos ver o que acontece nesse dia. Monitores, passem somente os momentos com interações com outras pessoas. Não aguento mais ver os momentos solitários, minha essência só pensava em morte.
      As memórias ficavam armazenadas em sua cabeça, mas ele preferia vê-las na tela grande do apartamento, então fazia a transferência. Ele podia ver partes dos registros do dia, não integralmente, se preferisse. Tirando as interações profissionais, que Roberto também mandou pular, só restou um telefonema, que sua essência fez a uma mulher.
      - Alô?
      - Mônica.
      - Oi, é Homero, é aí, muito cansada?
      - Um pouco - voz preguiçosa, estava na cama com sono.
      - Como foi o dia? - Homero estava excitado, concentrava-se nas palavras, queria as palavras certas.
      - Como sempre, a chefa fazendo aquelas reuniões intermináveis que nunca dão em nada.
      - Entendo, pior que reunião são vídeo-reuniões, tenha dessas de vez em quando.
      - Queria fazer outra coisa, ao invés de matemática.
      - Li um texto interessante hoje, "Possuir é perder, sentir sem possuir é guardar, porque é extrair de uma coisa a sua essência.", de Fernando Pessoa -  ele queria profundidade.
      - Legal, é por aí mesmo - ela só queria dormir.
      - Você está cansada, né?
      - Um pouco, me liga amanhã - ela nem pegava, nem largava, tipicamente fêmea.
      - Está bom, abraço, bom sono.
      - Obrigada.
      "Sou o cara mais chato do mundo, sempre digo as coisas erradas nas horas erradas, quando vou aprender?", pensou Homero. O telefone mal havia desligado e tocou novamente, Homero atendeu. "alô? alô?", silêncio, ninguém falava nada, "alô?", então desligaram, nenhum número tinha sido identificado pelo telefone. Homero pensou, "o que foi isso, não é a primeira vez".
      Foi tudo o que Roberto viu, reafirmou o que ele sempre achava de sua essência, um loser.
 
      - Oi Roberto.
      - Olá, tudo bom?
      - Mais ou menos...
      - O que foi?
      - Vou ser transferido.
      - Como assim?
      - Sou o único solteiro da turma, sobrou pra mim, precisam de alguém em outro lugar.
      - Então você foi promovido.
      - Sim, mas não queria sair daqui, gosto da cidade.
      - Fazer o quê, vamos almoçar?
      - Acho que não, vou à praça.
      - Está bom, depois passo lá.
      Seu amigo estava desconcertado, não queria deixar a cidade, sentiu-se objeto, sem independência, apenas uma peça do sistema, podia ser movido ou trocado quando quisessem, sem que ele pudesse fazer nada para impedir, era apenas uma marionete em mãos mais maiores. Roberto tentou consolá-lo, dizer aquelas coisas metafísicas absolutas que não confortam ninguém de fato, que Deus sabia o que fazia, que tudo estava sob controle, que algo melhor e maior o surpreenderia, que ele precisava crer e seguir em frente. Mas que argumento convence uma alma ferida, que sente que é usada e que nunca tem opção de realmente escolher o que realmente quer para si?

      - Ano quarenta e um, mês quatro, dia vinte e seis - disse Roberto - mesmas preferências da última vez.
      - Se seguir as mesmas preferência não existe nada para ser visto - responderam os monitores.
      - Então pode passar o que aconteceu integralmente após às dezenove horas
      Roberto só queria ver o que sua essência tinha feito em suas horas de lazer, sua vida afetiva, se é que ela existia, o mais não interessava. Às vezes, olhava só como um ritual diário, já que se não visse no dia, não poderia ver nunca mais, então, em seu processador cerebral só restariam as próprias memórias. Essas, contudo, não eram fidedignas, algum defeito de fabricação dos processadores de memórias pessoais mudava aquilo que era visto originalmente, podia tanto subtrair coisas, como adicionar, os Robertos não sabiam disso.
       Homero chegou tarde naquela noite, comeu um resto de pizza do domingo, viu um pouco de televisão, e mais nada. Roberto, que procurava ansiosamente por algo novo, uma  nova experiência, uma nova emoção, acabou de ver o vídeo frustrado, nada havia acontecido na vida de sua essência. Porém, um novo telefonema, sem identificação, tinha sido atendido por Homero, ele até ouviu uma respiração forte, som do televisor ligado no fundo, mas sem falar nada, a pessoa tornou a desligar.
      Ainda se questionava sobre Homero, quando seu processador interno acusou mensagem de manutenção: "comparecer amanhã para troca de peça na cabeça, o controle central acusou sensibilidade à falta desequilíbrio de energia entre funções vitais, o descanso programado para o período noturno pode não estar devidamente calibrado para corresponder às necessidades do trabalho realizado durante o período diurno". Em outras palavras, a frustração de Roberto estava prejudicando seu sono.
   
      Roberto foi ao hospital na sexta-feira à tarde, só fez isso porque a manutenção era nível dois, com três dias no máximo para resolver, ele não queria fazer isso no sábado. Quando era manutenção nível três, com mais tempo para resolver, ele sempre deixava para a última hora, Roberto odiava hospitais. Fizeram a troca da peça e aproveitaram para fazer um check-up geral, aí foi obrigado a ouvir do médico aquelas ladainhas de sempre.
      - O colesterol está meio alto, a hérnia de disco aumentou, cuidado com o fígado.
      - Passo a vida sentado e bebendo.
      - Exercícios, andar um pouco todos os dias ajuda bem, o colesterol é o regime que eu já te passei, maneire nas biritas.
      - Ok.
      - Somos simuladores dos corpos carnais de nossas essências, temos algumas qualidades a mais, contudo, os mesmos defeitos. Os humanos acharam que isso, os defeitos, importam mais que as qualidades, para que tenhamos uma vida semelhante a deles, emocionalmente.
      - Que burrice, viveram três mil anos achando defeitos neles, para depois criar cópias com os mesmos problemas, eu teria tirado alguns.
      - Até tentaram, mas a mesma sofisticação que deu a nós capacidades de vivermos como os humanos, também nos deu doenças, físicas e psicológicas, no final das contas somos só imitações.
      - Seja como for, nós conseguimos sobreviver às doenças que eles mesmo criaram, eles não, foram extintos.

     À noite, Roberto viu mais uma memória diária de Homero, estava desanimado e se perguntava: o que o ajudava, saber mais sobre sua essência? Auto-conhecimento, para quê? Depois viu alguma reprise de série antiga na TV, uns quatro episódios diretos, os monitores tiveram que se desligar automaticamente.

     No sábado Roberto queria fazer algo diferente, filmes de dramas psicológicos e ficção científica não preenchiam mais sua necessidade de prazer, ele precisava interagir com a realidade, assim resolveu que iria a um lugar onde houvesse música para dançar, música alta e álcool talvez fizessem algum sentido, faziam sentido para muita gente. Seu amigo também queria fazer algo diferente, numa despedida daquela cidade que ele tanto gostava.
      No canto do balcão, ele segurava um copo de uísque, seus olhos fitavam o amigo, dançando com alguém, alguém que acabara de conhecer, um rapaz novo, magro e elegante.
      - Por favor, uma taça de espumante - alguém gritou para o barman, era uma mulher bonita, madura, mas ainda com sorriso de adolescente, Roberto não resistiu.
      - Champanhe, que chique.
      - Eu gosto - disse ela com um sorriso tranquilo, com uma convicção elegante, que não se impunha, apenas dizia o que gostava, mas não queria incomodar ninguém com isso.
      - Tudo bem. - respondeu Roberto, com um sorriso forçadamente charmoso e másculo no rosto, mas ele precisava dar continuidade à conversa.
      - Gosta de dançar?
      - Acho que sim, minha essência deve gostar -  ela se apoiou no balcão, segurou o rosto com a mão direita, fixou rapidamente os olhos sobre os olhos de Roberto e depois os deixou cair, não para o corpo dele, mas de sua timidez. Ele se apoiou com os ombros no balcão, deu um gole na bebida, mais para fazer tipo que para saborear o uísque, e pensou rapidamente em algo que pudesse prender a mulher àquele lugar.
      - Eu ainda não entendi o que minha essência quer.
      - Mônica não tem muitos cadeados, curte de tudo.
      - Mônica é o nome de sua essência? - perguntou ele assustado.
      - Sim, qual o nome da sua? - ele teve medo, não queria entregar o jogo assim, por outro lado não existem somente uma essência Mônica no mundo, poderia ser outra, mas e se não fosse, e se ela conhecesse Homero? Roberto fez aquilo que mais fazemos em jogos de sedução, mentimos.
      - Humberto. Como é a Mônica?
      - Mal nos conhecemos e você quer saber como é minha essência? Isso é muito íntimo, Roberto - disse a mulher com um sorriso gostoso no rosto. As mulheres são assim, podem até ir para a cama com você e fazer de tudo e mais um pouquinho com os corpos, mas não pergunte sobre o que existe em seus corações, isso sempre será um mistério, homem ou robô algum conseguiu lidar com isso.
      - Eu sei, me desculpe - "já estou eu fazendo a coisa errada novamente", pensou Roberto, "quando vou controlar minha ansiedade?".
      Eles conversaram bastante, ele citou o nome Homero algumas vezes, meio que dando uma indireta na mulher, contudo, Roberta parece que nunca havia conhecido ninguém com esse nome.

      Na segunda-feira à noite, Roberto fez de tudo para esquecer o assunto, mas o número de telefone que Roberta tinha passado a ele voltava à sua memória, queimava seus microcircuitos. "Se eu não ligar pra essa mulher vou ficar maluco, o que de mal pode acontecer, eu receber um não? Com isso eu já estou acostumado", ele pensou.
      - Alô?
      - Oi.
      - É o Roberto - o processador interno de Roberta identificou a identidade daquele que falava com ela, já que ele não se lembrava do tom de voz do cara que tinha conhecido no sábado à noite. Num mundo onde tudo é registrado e controlado por processadores, todos terem o mesmo nome não importa.
      - Roberto... ah, o programador biogênico de sábado, tudo bom com o senhor?
      - Sim, acho que falei demais de mim mesmo, você já sabe tudo sobre mim, pronto, acabou-se o mistério.
      - Ninguém nunca sabe tudo sobre alguém, Roberto, mesmo depois de se viver cinquenta anos com uma pessoa, na maior das cumplicidades.
      - Você tem razão, e como foi seu dia?
      - Como sempre, a chefa fazendo aquelas reuniões intermináveis que nunca dão em nada. Queria fazer outra coisa, ao invés de matemática.
      Ela disse as mesmas coisas que a Mônica disse, não pode ser, sua essência é a Mônica do Homero, concluiu Roberto confuso, mas se é, como ela não conhece o Homero? Pensou ele.
      - Você é professora?
      - Sim, mas agora trabalho com coordenação regional da minha área, quase uma funcionária pública.
      - Minha área é desenvolvimento de projetos biológicos, eles estão sempre querendo melhorar nossos corpos, mas com certeza os melhores upgrades poderão pagar só os mais ricos.
      - É o mundo, sempre foi assim, e parece que ninguém aprende com os velhos erros.
      - A gente estuda desde pequeno na escola que o mundo das essências acabou por causa de egoísmo, de ricos querendo dominar sobre pobres, de mau zelo na administração do planeta, mas acho que um dia vai acontecer tudo novamente.
      - O mundo moderno é diferente, Roberto, hoje existe mais respeito com as diversidades, com as escolhas pessoais, e todos têm as mesmas chances, só não se dá bem quem não quer.
      - Você sabe que isso não é verdade, há politicagem, negociatas por baixo do pano, corrupções, e muita coisa é escondida da maioria, tudo é manipulado.
      - Prefiro pensar na minha vida, já é tão difícil, não fico perdendo tempo com teorias de conspiração - Roberta era prática, Roberto um sonhador.
      Ele conversou umas duas horas com ela, ela até admitiu que sua essência conhecia um programador biogênico, mas nunca viu Mônica se referir ao nome dele, parece que o tal Homero era apenas um amigo que Mônica tinha, alguém por quem ela até tinha certo afeto, mas ninguém especial. Bem, nem o nome do cara ela se lembrava, não ficou gravado nas memórias da essência, não foi alguém que de alguma forma fez diferença em sua vida.
   
      Na terça-feira de manhã, antes de começar o serviço, Roberto foi dar uma olhada na caixa de mensagens, uma mensagem com o marcador de cruz negra chamou sua atenção, ele até hesitou em abrir, sabia o que significava aquele sinal. "Comunicamos aos conhecidos, cujos endereços eletrônicos foram encontrados na lista de Roberto 9.004.563.810, que ele faleceu nesta madrugada, vítima de queda do trigésimo terceiro andar do prédio em que residia. Os registros de memória pessoal mostram ele se jogando, mas por enquanto não sabemos se isso foi um fato, ou uma imaginação, portanto, até o momento, não pode ser afirmado o que causou a queda. A polícia está investigando, o que se sabe com certeza é que ele estava sozinho em seu apartamento, nenhum visitante foi constatado pelo processador zelador do prédio, seja como imagem, áudio ou outros dados". Roberto, o amigo de Roberto, tinha se suicidado, era isso mesmo? Como assim?
      Roberto conhecia o amigo, vivia com ele, tomavam suas refeições juntos muitas vezes por semana, até saía de vez em quando para se divertir com ele. Roberto sabia que Roberto não tinha aceitado muito bem sua transferência, mas isso teria sido tão sério assim, a ponto dele desistir da própria vida? Um pouco abaixo, da mensagem com o marcador de morte, havia outra mensagem do ministério público, essa específica para Roberto: "Como de vontade de Roberto 9.004.563.810, conforme termo assinado e autenticado por ele em cartório, ele passa para seu amigo Roberto 9.002.745.360 os direitos às memórias de sua essência, a partir do seu último dia de vida como organismo cibernético".
      O corpo do amigo já havia sido incinerado, suas memórias tinham sido transferidas para o processador do apartamento de Roberto. Ele chegou em casa com um misto de curiosidade mórbida e receio, receio esse criado por um certo sentimento de culpa. Nem acendeu as luzes e já pediu para que os monitores executassem o arquivo da essência do amigo, mas não havia nada mais que registros da noite do suicídio. Nem sempre era assim, alguns casos, a morte do Roberto aconteceria, sendo que a essência ainda teria muitos dias, mesmo anos, de vida. Acontecia o contrário também, a essência morrer, mas o Roberto insistir em continuar vivendo, sozinho, sem lembranças de sua essência vital para acompanhá-los na existência.
      Roberto pode ver também uma memória pessoal do amigo, ele viu um apartamento sujo, escuro, com roupas largadas pelo chão, prato, talheres e copo numa mesinha em frente ao monitor de imagens. Não, não era o apartamento do amigo, ele era organizado, limpo, até demais, Roberto foi uma vez pegá-lo em casa, nem chegou a entrar, mas viu, pela porta aberta, um espaço minimalista, que cheirava a desinfetante. Nas imagens alguém, que ele só identificava a mão, pegava um telefone, discava um número e ficava ouvindo, a pessoa não falava nada, apenas ouvia por alguns instantes e então desligava. Roberto não teve dúvidas sobre o amigo, ele conseguiu descobrir pelo número discado, era o número de Homero. Roberto, o amigo de Roberto, eram quem ligava para Homero, quer dizer, sua essência era o fã secreto de Homero.
      Roberto teve acesso às memórias pessoais do amigo até o momento final, quando os registros mostravam a queda. Oficialmente eles demoravam para dar o veredito final, mas Roberto não tinha dúvidas, aquilo não era imaginação, o amigo havia se matado. Contudo, algo chamou a atenção de Roberto, a presença distorcida de memórias de relações sexuais, naqueles últimos momentos de vida, relações homossexuais. Nelas homens de tons de pele e de estaturas diferentes apareciam, mas os rostos eram sempre o mesmo, o dele, Roberto. Ficou claro para Roberto, que seu amigo mantinha uma paixão secreta por ele, parece que o mesmo ocorria com sua essência, em relação a Homero, entendeu isso pela imagem da ligação anônima.
   
      O tempo passou, Roberto desistiu de assistir os registros de sua essência. Com o tempo foi se aproximando de Roberta, eles passaram a ficar juntos, namoraram e finalmente começaram a morar no mesmo lugar. Era bom para os dois, deixaram seus antigos apartamentos e alugaram um maior, dividindo as despesas. Um dia, sozinho em casa, Roberta tinha saído para fazer um curso em outro estado, Roberto resolveu assistir as memórias de sua essência.
      - Ano quarenta e seis, mês dez, dia vinte e nove.
      - Devo usar as últimas preferências?
      - Nem me lembro mais quais eram.
      - Só registros de interações com outros seres, interações não profissionais.
      - Há, me lembrei, nada de solidão e trabalho, está ótimo, pode ser.
      Roberto viu as imagens daquele dia de sua essência, se existe destino, ele foi além dos três mil anos da história humana, perdurou até os dias daqueles seres cibernéticos. Não poderia serem mais significativas as imagens, foram poucas, mas suficientes, ele tinha que escolher justamente aquele dia para vê-las. Nos registros, Homero não estava mais sozinho, morava com Mônica, contudo, parece que a mulher sofria de alguma enfermidade, amnésia, sei lá, ou dificuldades visuais e auditivas. Homero chamava por ela, mas ela não respondia, dormia na mesma cama, mas nunca se comunicava com Homero. As imagens de Mônica nos registros eram confusas, Roberto não conseguia enxergar direito seu corpo, parecia um fantasma.
      Quando Roberta chegou em casa, Roberto perguntou a ela: "você tem visto os registros de sua essência?", "não", respondeu Roberta, "na verdade faz muito tempo, anos que não vejo, nunca fui de ficar assistindo esses registros, tenho na memória imagens da infância, e só".
      Roberto fez algo que nunca tinha feito, instalou um software secreto nos monitores, para gravar algum registro de essência de Roberta, caso ela os usasse para reproduzir as memórias de Mônica. Ele trabalhava na área e conhecia um hacker que vendia softwares ilegais, é preciso entender que isso era algo que não se fazia no mundo dos sósias cibernéticos, isso era bisbilhotar a intimidade mais secreta de um ser, havia leis que puniam severamente quem fizesse isso.
      Uma semana depois, numa noite que Roberta trabalhou até mais tarde, Roberto foi dar uma olhada no software pirata que havia instalado nos monitores, ela tinha checado por toda a semana, mas não havia achado nada. Naquela noite ele achou, eram imagens da noite anterior, depois que ele havia ido para a cama, Roberta ficou sozinha na sala e assistiu imagens de sua essência. Pronto, agora Roberto veria o ponto de vista, não de Homero, mas de Mônica, ele queria saber porque para Homero os registros de Mônica eram tão estranhos. Ele se arrependeria disso, melhor não ter invadido a privacidade alheia, ele não era Deus.
      Ele viu imagens do dia anterior, registros proibidos pela cultura do mundo dele, e pior ainda, registros de outra pessoa. Mônica era muito simpática, competente no que fazia, tanto tecnicamente quando socialmente, durante o dia, em seu trabalho, ela parecia ainda mais linda, mais iluminada, mesmo que estressada às vezes. Contudo, quando chegava em casa, o tom mudava, o laranja vivo dava lugar ao cinza, mas o que chamou a atenção de Roberto foi que à noite, Homero simplesmente não existia, Mônica estava sozinha no apartamento. Ele ainda olhou a data dos registros, era do dia anterior, e na noite passada ele estava lá no apartamento, com Roberta, tinham conversado, jantado juntos, assistido TV, contudo, nas memórias de Mônica, ela estava só, absolutamente só.
      Homero existia na vida de Mônica, quando ela foi tomar banho, por algum motivo, tirou a aliança da mão esquerda, Roberto deu pause na imagem, aumentou-a e fez a constatação, o nome de Homero estava gravado lá, portanto Mônica estava casada com Homero, sim havia uma coerência entre o mundo das essências e o mundo atual, como era de se esperar. Mas parece que isso era só no papel, não em seu coração, Mônica ainda não sabia da existência de Homero, mesmo cinco anos depois, mesmo morando junto com ele, ele não fazia parte de suas memórias, não significava nada para ela.
      Roberto teria que guardar essa dor com ele, não poderia revelá-la, se soubessem o que ele fez poderia ser processado e até preso. Ele tornou a fazer gravações proibidas, e novamente fez a constatação, de novo e de novo. Roberta, contudo, sempre tratava-o muito bem, com carinho, com cuidado, sempre foi assim, mas era isso que Roberto não entendia, como podemos ser alguém tão diferente daquilo que era sua essência? Como podia viver de uma forma, enquanto seu coração vivia de outra forma? Como sobreviveu com essa disparidade, essa incoerência, essa hipocrisia?
      Eles não ficaram juntos por muito mais tempo, Roberto pediu separação, coisa que Roberta não entendeu, não gostou, chorou muito. Isso só deixou Roberto mais confuso, mas ele foi firme, não poderia viver com alguém assim, dividida, que dizia uma coisa, mas sentia outra, bem, isso pelo menos foi o que Roberto entendeu de tudo o que tinha visto. Passaram-se mais uns quatro anos e Roberto resolveu dar uma olhada no dia de sua essência.
      - Ano cinquenta, mês sete, dia vinte e um.
      Homero estava sozinho, mais do que nunca, mas agora não ficava tão preso dentro do apartamento, saía quase todas as noites. Contudo, quando estava quase chegando à meia-noite, com Homero já em casa, tomando um copo de água gelada no escuro de sua sala, cercado de memórias, o telefone tocou. Ele atendeu, mas ninguém disse nada, insistiu, esperou, só silêncio. Roberto tinha certeza, em algum lugar, de alguma maneira, a essência do amigo Roberto que já não existia no novo mundo de sósias cibernéticas, ainda vivia, ainda amava, ainda mantinha uma esperança, de um dia ser amado por Homero, ou por Roberto 9.002.745.360.

      Quem somos afinal? Que obrigação temos de nos darmos totalmente a alguém? Que direito tem alguém de nos ter por inteiros? Temos capacidade de sermos inteiros? Incoerência existe? Talvez para quem está fora de nós, que nos vê. Aquilo que outros chamam de incoerências em nós, contudo, de traições, são maneiras que encontramos para sobreviver, para harmonizar os mistérios das almas de todos nós. Ninguém quer ser incoerente, mas cada verdade individual é construída com pequenas mentiras, ou melhor, com ilusões, suficientes para que provemos algum prazer. Sem prazer não se vive, física e emocionalmente, ele é necessário para que um dia termine e um novo dia comece. Agora a nossa essência, a verdade mais real sobre nossas identidades, essa só conheceremos quando toda a carne for descartada, e mesmo, quando todo implante, toda artificialidade, toda máscara, seja orgânica ou cibernética, for arrancada, deixando-nos totalmente nus.