domingo, 31 de janeiro de 2016

_2001 - Uma Odisseia no Espaço (Stanley Kubrick/1968)


      Stanley Kubrick coescreveu com Arthur C. Clarke, muito mais que uma história para ser acompanhada, mesmo porque muitos ainda não conseguiram entender exatamente a história desse filme até hoje, mas uma obra de arte para ser apreciada, como um quadro de Da Vinci, principalmente pela técnica de efeitos especiais, com iluminação perfeita e que ainda nos surpreende, mais tomadas que simulam ambientes de gravidade menor que quebram nossas cabeças, quando pensamos como foram feitas, uma ficção científica de arte, uma das poucas, para ser sempre revisto.

sábado, 30 de janeiro de 2016

O guarda-roupa do meu pai

"As Crônicas de Nárnia" (Andrew Adamson/2005)
      Camada por camada, fui me despindo, arranquei minha face esculpida a nãos e cale-se, cortei meus pés, não foram feitos para caminhar neste mundo, extirpei meus olhos, minha atenção nunca esteve em coisas que precisam de globos oculares para serem vistas, deixei meus ouvidos maníaco-depressivos e minhas mãos, íntimas do ébano e do marfim. De fato não tirei nada, apenas acalmei as águas, que turvas não deixavam ver o fundo, assim a lama, antes precipitada pelo ódio e pelas mágoas, descansaram nas profundezas, elas ainda estão lá, não deixaram de existir, mas agora quietas, uniformemente deitadas sobre os declives da minha alma, não deformam aquilo que sou, apenas dão alguma cor à minha verdade.

      - Meu filho, vai sair assim?
      - Vou mamãe, o que é que tem?
      - Assim você vai passar vergonha, vista alguma coisa.
      - Para que? Eu nasci assim...
      - Veja lá no quarto do seu pai, no guarda-roupa, deve ter alguma coisa que sirva pra você - o menino se dirigiu para uma parte da casa na qual nunca havia entrado.
      - Mãe, a porta está fechada.
      - A chave está dentro do vaso, na mesinha do corredor.
     Ele teve medo, achou que algum bicho iria mordê-lo, em sua mente viu aranhas e escorpiões, mas tomou fôlego e colocou a mão dentro do vaso. Um frio medonho esfriou seus dedos que começando por mãos e braços tomou conta de todo o seu corpo, era uma sensação estranha, a mesma que ele teve quando foi ao enterro de sua avó, ele até sentiu o cheio de parafina queimada no ar, ar que pesava, pressionando seu peito, roubando-lhe oxigênio, impressionando nele uma memória que carregaria pelo resto da vida.
     O menino colocou a chave na fechadura, duas voltas e a porta se abriu, procurou o interruptor na parede da esquerda, achou-o e acendeu a luz, uma luz fraca e amarela, que parecia ter tornado o ambiente ainda mais escuro. Havia uma cômoda à esquerda, ao lado do interruptor, uma cama de casal no meio do quarto, rente à parede paralela da esquerda. À direita havia um espaço por onde ele andou até o guarda-roupa, na parede da frente, no fundo do quarto. Os móveis eram enormes, com detalhes redondos nas laterais, cantos e parte superior, de madeira maciça, revestidos de um verniz vermelho escurecido pelo tempo.
     Ao pegar na tranca do guarda-roupa teve a mesma sensação de quando introduziu a mão no vaso, o metal estava gelado, mas ele foi em frente, abriu uma porta, depois a outra. O que lhe chamou a atenção de cara foi um traje vermelho, com rabo e chifres no capuz, a roupa se sobressaia a todas as outros penduradas, ficava bem no centro, brilhava a ponto de doer seus olhos. Ele teve um desejo imenso de tocar o traje, era liso, gelado, mas tão frio que queimava as pontas de seus dedos, de sobressalto ele recolheu a mão. Havia toda espécie de roupas, femininas, masculinas, números menores, números maiores e mesmo tamanhos extra-grandes.
     Todas as roupas tinham máscaras amarradas nos cabides, mas não eram máscaras de plástico ou de tecido, eram para toda a cabeça, pareciam feitas de pele humana, com cabelos e mesmo com barbas. O menino reconheceu em cada máscara traços de seu pai, a testa grande, o queixo furado, os olhos pequenos, os lábios murchos e finos, contudo, em cada uma, havia uma expressão diferente. Algumas máscaras riam, outras choravam, em algumas havia uma expressão de ira assassina, em outras, um encantamento inocente de quem olha o mar pela primeira vez. Ele tentou achar uma roupa que combinasse com ele, no traje e na máscara, mas foi difícil, sempre havia alguma coisa que não casava.
      Enfim achou algo, que o fazia lembrar os filmes norte-americanos que via no cinema, um calção azul marinho, uma camiseta polo listada de azul e vermelho e uma máscara, o rosto era de um garoto inocente dos anos 1950, como aqueles que os cowboys encontravam numa fazenda no meio do oeste, órfãos de pai, que viviam só com a mãe, garotos com os quais os cowboys mantinham um relacionamento paternalista por um tempo e depois partiam, deixando o menino sozinho novamente. Ele se vestiu e saiu, foi brincar na rua, orgulhoso das roupas que vestia.
      Sentiu-se bem no traje que escolheu, contudo, depois de sair algumas vezes com a roupa e a máscara, o encantamento foi diminuindo, então ele parou de olhar para si mesmo e começou a prestar atenção nas pessoas. Elas olhavam para ele e cochichavam entre si, as meninas riam, e os meninos balançavam a cabeça em desaprovação. O garoto percebeu também que as outras crianças se vestiam diferente dele, foi nesse momento que as vozes começaram a se multiplicar em sua cabeça, dizendo, "que roupas fora de moda, ele veste", "coitado, acho que usa as roupas do pai dele quando era criança", "ridículo, nada a ver, totalmente sem noção esse garoto", "não sabe brincar, está sempre caindo e se machucando".
      Triste e humilhado, ele voltava ao guarda-roupa, tentava outro traje, punha-o sobre o anterior, mas a cada tentativa uma nova decepção, ao mesmo tempo que o guarda-roupa se esvaziava e as opções diminuíam, até que um dia ele só achou a roupa vermelha com rabo e chifres. Ele se recusou a vesti-la, já que seu pai vestia uma igual e nunca a tirava, ele não queria ser igual a seu pai, um homem calado e violento, assim, com medo das pessoas ele se trancou dentro do móvel. Naquele cubículo escuro ele permaneceu, vendo apenas o mundo de fantasias que ele criava em sua mente, fazendo das suas estórias uma realidade para fugir das mentiras herdadas de seu pai. Suas estórias lhe deram algum alento por um tempo, livros e livros eram escritos, quando ele procurava um contexto onde pudesse ser feliz.
      - Você acha que se esconde aqui dentro? Aqui estamos nós dois, aqui sou sua única luz - dizia a roupa vermelha ao menino.
      - Que direitos tem você sobre mim? Nunca te vesti - respondeu o garoto que não se surpreendeu ao ver uma roupa falante.
      - Cada traje que você vestiu continua com você, e quem  você acha que os criou? - respondeu o traje infernal.
      - São suas essas roupas? - perguntou o menino.
      - Sim, cada uma delas, fui eu quem criou, todos os homens de sua família as vestiram, seu pai, seu avô, vestiram todas as roupas, até a última, a vermelha, essa eles nunca mais tiraram, por que você resiste em usá-la? Não vai poder sair e enfrentar o mundo de outra forma - não era a roupa que falava, mas o espírito dentro dela, que se confundia na cabeça do menino.
      - Vou tirar todas as roupas que vesti, aí você não terá mais direito a minha alma.
      - Vai ficar nu? Pode até tirar, mas aí só te restará essa, a vermelha.
"De Olhos Bem Fechados" (Stanley Kubrick/1999)
      O garoto começou a tirar as roupas, uma a uma, as últimas até que foram fáceis, contudo, à medida que chegava às mais antigas, ficava mais difícil. As vestes antigas pareciam presas ao seu corpo, coladas a ele, ele também percebeu que existiam roupas que ele nem se lembrava de ter vestido. À medida que se despia, achou roupas estranhas, trajes femininos, trajes infantis, mesmo fantasias de monstros e animais, ele não se lembrava de ter vestido tais roupas. Contudo, quando as via, fora dele, jogadas no chão do guarda-roupa, voltavam-lhe as lembranças, lembranças terríveis de algo que ele tinha sido e não queria se lembrar. Mas agora eram só roupas, alguns instantes depois de tirá-las e lançá-las fora, as memórias ruins iam embora, como se nunca tivessem sido parte dele. Assim foi, até a última roupa, aquele calção azul marinho com a camiseta polo listada de azul e vermelho e a máscara do garoto dos anos 1950, então ele parou e pensou em voz alta:
      - Esse sou eu, enfim cheguei à minha essência.
      - Sim, esse é você - disse o traje vermelho com sarcasmo.
      "Enfim me encontrei", disse o menino para si mesmo, "agora posso sair e enfrentar as pessoas". Ele abriu a porta do guarda-roupa e se foi. Era noite de sexta-feira, ele queria conversar com as pessoas, beber um pouco, voltar a colocar seus dedos sobre as teclas brancas e pretas de um piano. Assim ele entrou num bar, seguro, convicto que sua desconexão havia acabado, que enfim as pessoas veriam nele alguém como elas, que confiariam nele, o amariam, dariam a ele o direito de fazer parte do mundo real. Lá no fundo do bar, havia um pequeno palco e sobre ele, um piano, ninguém estava tocando, nem havia música no ressinto, era a oportunidade que ele queria para mostrar o que ele tinha de melhor. Ele seguiu, direto para o instrumento, subiu no palco e assentou-se ao piano. Seus dedos correram sobre as teclas de um jeito como nunca tinham corrido, ele tocou um standard dos anos 1940, tocou com técnica e com paixão, as notas pareciam ter vida própria, todos no local se calaram e prestaram atenção à música, tocados com tão linda apresentação.
      Quando ele acabou a música, começaram a aplaudir, então o menino se levantou, extasiado, seu coração sentia um prazer que nunca tinha sentido antes, ele flutuou, sorriu como nunca havia sorrido, se sentia com quinze anos novamente. Então, as palmas começaram a diminuir, uma a uma, até que um silêncio tomou conta da sala. Aos poucos as roupas de todos no lugar foram se transformando, de homens, mulheres, clientes e funcionários, foram ficando vermelhas, até que todos no bar estavam vestidos com aquela roupa vermelha que tinha sobrado dentro do guarda-roupa, todos com rabos e chifres, mascarados como diabos. Desesperado e sem entender o que acontecia, o menino saiu correndo, atrás ficaram as vozes, as mesmas vozes, dizendo, "que roupas fora de moda, ele veste", "coitado, acho que usa as roupas do pai dele quando era criança", "ridículo, nada a ver, totalmente sem noção esse garoto", "como toca mal".
      Ele correu pelas ruas, mas todo mundo vestia vermelho e todos zombavam dele. Ele tentou se esconder com os sem-tetos, com os noias, com os párias, mas mesmo esses escarneciam dele. Então, procurou as prostitutas, os bandidos, os cruéis, esses também não quiseram sua companhia. Enfim, cansado, buscou ajuda dos religioso, entrou num templo e começou a cantar, com todo mundo, contudo, quando prestou atenção no ambiente, quando viu, não aquilo que queria ver, aquilo que os homens diziam haver no lugar, mas a realidade, ele percebeu que lá não só todos se vestiam de vermelho, mas era um traje vermelho especial, não de soldados rasos do inferno, mas de oficiais. Eram roupas luxuosas, feitas dos melhores materiais, e na frente, no púlpito, o próprio príncipe dos diabos dirigia a reunião.
      O menino correu para o único lugar que poderia lhe dar abrigo, o guarda-roupa, fechou a porta por dentro e agachado no chão escuro do móvel, chorou, amargamente. Enquanto procurava em sua alma uma visão, uma fantasia, um sonho, um estória para contar em sua cabeça, uma canção para levá-lo para algum lugar onde houvesse pelo menos um pouco de prazer, ele ouviu uma risada, era a roupa vermelha, sua única companhia dentro do guarda-roupa.
      - Vagabundo, você acha que encontraria alguma alegria lá fora? Você me pertence, isso será assim para sempre, vista-me de uma vez.
      - Não, não vou vesti-la, não vou entrar no seu jogo, não vou adorá-lo, isso nunca - a roupa e o espírito se confundiam novamente na cabeça do menino.
      - O que te restou, além de mim? Comigo você não precisa de fé, eu sou real, basta me vestir.
      - Não, nunca - disse o menino aos berros.
      "Eu não entendo", pensou o menino, "tirei todas as roupas, por que esse diabo ainda tem poder sobre mim?". Foi então que ele entendeu, ainda estava com uma roupa, uma mentira, e isso ainda dava legalidade ao diabo de possuí-lo. Ele pensou, "mas se eu tirar essa roupa, ficarei pelado, talvez não tenha mesmo outro jeito, farei isso". O garoto começou a se despir, essa roupa foi a mais difícil de todas, ele teve que parar de se vitimar, de se fazer de inocente, de criança, de menino, de fraco, de joguete nas mãos dos outros, arrancar esse traje que tinha se misturado com sua pele natural doeu, arrancou-lhe sangue. Todavia, ele teve que amadurecer e virar homem, para ver que a roupa de garoto era realmente algo que não fazia sentido pra ele, ele não era aquilo, pelo menos, não mais.
      Então, quando viu cair ao chão a última peça, quando assumiu sua nudez, sua verdade mais profunda, uma transformação começou acontecer nele. Uma roupa iluminada, linda, toda feita de ouro puro, começou a ser delineada sobre seu corpo, começou nos pés e foi até sua cabeça, não, não era roupa de homem, mas de anjo. Quando a transformação acabou, ele se olhou, e ficou muito feliz, sentiu em seu coração uma paz que nunca tinha sentido, mas entendeu que aquele traje não era mais do que ele mesmo. Agora não se vestia de fantasias, daquilo que os outros diziam ser o melhor pra ele, de trajes infernais, mas de sua essência, sua melhor e mais pura essência.
      - Não, tire isso - gritava o diabo - não posso suportar esse brilho, a luz é muito forte, vai me destruir, tire isso...
      A roupa vermelha que nada mais era que o príncipe dos diabos, não suportava a verdade exposta assim a sua frente, ela foi se consumindo, queimando, até se transformar numa pequena porção negra, resto de um mal que sempre foi engano, e que não tinha outra saída senão escapar pelas frestas do guarda-roupa, escorrer pelo chão da casa, afundar-se na terra até achar no inferno seu melhor lugar.
      O menino saiu do guarda-roupa e enfim, começou a viver, não, ele não virou um super homem, invencível e perfeito, ele era humano, contudo, agora, conseguia conviver com sua humanidade, sem máscaras, sem se importar tanto com o que os outros diziam dele, queriam dele. Ele conseguiu ser ele, único, singular, e mesmo assim não escandalizar ninguém.
      O menino, agora, um homem, achou seu pares, outros que como ele também passaram anos escondendo-se dentro de roupas fora de moda, desconectados da realidade. A roupa que ele vestia agora e que lhe dava noção real da vida, não era física, tecida de matéria, era espiritual, construída de um bom caráter, sincero e sem medos. Agora ele era respeitado e respeitava e podia seguir seu caminho com independência e paz. 

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

__"I Wish" (Stevie Wonder)



      Algumas pessoas tem a genialidade de mixar os melhores elementos de seu tempo e produzir algo espetacular, outras contudo, inventam os elementos, são os primeiros a fazer uma coisa, assim é Stevie Wonder, apreciação essencial para todo músico sério que quer construir uma identidade de qualidade.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

_Citizen Kane (Orson Welles/1941)



      "Cidadão Kane", dizer qualquer coisa sobre esse filme, é perder tempo tentando ser original, já foi dito tudo sobre ele, encabeça todas as listas sérias como número um, não só pela forma, pela fotografia, pelas tomadas de câmera, pela música (Bernard Herrmann), pela montagem (Robert Wise), mas pela realidade que ele mostra, não só retratando um importante dono de meios de comunicação da época, o magnata da imprensa William Randolph Hearst, mas também, de maneira profética, prevendo o poder que tem quem detêm e compartilha informação, que a manipula e usa para dirigir o mundo, um filme que custou caro a Orson Welles, foi proibida sua divulgação, boicotaram suas apresentações, foi esquecido, mas hoje é cultuado como o melhor filme de sempre, aos jovens, assistam, por favor.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

O homem partido

A alma deixando o corpo (L. Schiavonetti/1808)
      Então, do alto do terceiro céu, o Senhor de todas as almas soprou e o sopro de vida ultrapassou o espaço sideral, venceu a atmosfera terrestre, penetrou o espaço aéreo de um país e chegou até à cidade. Contudo, naquele momento, alguém que não deveria ter acontecido, estava sendo concebido, o prazer egoísta e violento de um homem procurava na fria resignação de uma mulher, tão insatisfeita com sua penitência, um casamento. O espírito de vida entrou naquele minúsculo pedaço de matéria, mas assim meio que de mau jeito, visto a ausência de amor que encontrara. Um humano se desenvolveu, dentro da mulher, depois dentro do mundo, ou melhor fora do mundo, já que aquele homem nunca se sentiu parte de algo. Então ele vagou pela terra, na solidão amante mais fiel dos homens, tentando se encaixar no sistema, mas sempre alienado, não é que ele não quisesse, mas simplesmente não pertencia ao planeta, homem partido que era.
      Tantas vezes, depois de andar pesado entre os homens, fazendo o possível para cumprir suas tarefas de sobrevivência, ganhando algum, tentando sorrir para algum desconhecido em alguma reunião social chata, ele fugia. Seu espírito deixava o corpo com ele ainda no meio das pessoas, tudo ficava distante e o túnel com a luz no fundo já podia ser visto, sua audição falhava, sua visão embasava e a noite era desejada por ele mais que tudo, como era bom deixar aquela farsa. Ele escapava para as ruas do centro imundo daquela cidade, que depois de beber sua alma como uma taça fresca de vinho rosê, lambia os lábios com luxúria, fugia para o colo de alguma profissional barata e feia, da qual ele só queria os ouvidos, mais nenhuma outra parte do corpo gelado da vampira. Seu espírito não estava suficientemente preso ao corpo, sua alma se dividia, e seu corpo resistia ao entorpecimento de um gin com tônica, sentado sozinho num bar, junto de outros corpos também desconectados.
      Mas em seu leito é que ele tinha as experiências mais estranhas, preso na cama e ao mesmo tempo flutuando sobre si mesmo, saindo pela janela, visitando seus tempos. O corpo era torturado com a maior das solidões, ter até o próprio espírito separado, voando dentro de uma casa grande do passado, onde o medo de fantasmas era seu único cobertor, ou num apartamento fantasticamente iluminado pela cena final de "Uma Odisseia no Espaço", sabendo de coisas que ainda não haviam acontecido. A verdade, porém, era que noite e dia, estar dormindo e estar acordado, eram coisas não tinham muita diferença para ele. No começo, contudo, ele ainda podia dormir o suficiente para restaurar parte das energias do corpo, mesmo em suas abduções havia algum descanso, depois vieram as drogas, então, a mente, cansada de tentar conectar partes que já estavam desligadas desde seu nascimento, também quebrou. Nesse processo de auto aniquilamento esgotado por tantos eus, o desejo começou a minguar. Bom para o corpo, que se livrou de situações perigosas, que podiam ter levado o homem às cadeias da lei, por se mostrar por aí sem pudor, ruim para a alma que começou a morrer, quanto ao espírito, separado.

      Em suas andanças o homem partido encontrou o amante dos inícios, ou apaixonado por introduções, esse pseudo-sábio o seduziu com sua ciência. Quanto encantamento havia nele pela arte, o homem-partido aprendeu que bibliotecas são pedaços do paraíso na terra conservados fora da Babilônio nos quais anjos brincalhões permitem que os homens entrem, se alguma propina lhes for dada. Que propina compra anjos? Porções de inocência, os que leem adquirem conhecimento e perdem uma ingenuidade que nunca mais lhes será restituída. O apaixonado por introduções conhecia todas as religiões, filósofos e escritores, discorria sobre tudo isso com paixão, como quem vê a nudez de alguém pela primeira vez, mas era só isso que esse sábio podia fazer. Depois que ele abria uma porta, se assustava com a novidade, então a fechava, quase que imediatamente. Uma bela mulher que aguardava para amar alguém até o anoitecer do outro dia, permaneceria lá, esperando, esse falso sábio poderia até sonhar com a visão, e excitado com ela, se dar algum prazer, mas seria apenas masturbação egocêntrica, nunca uma relação real e completa com alguém. O amante dos inícios nunca teve uma experiência prática com nenhuma das teorias que conhecia, ele não se permitia isso, eram para ser apenas experimentações intelectuais, platônicas e infantis. Ah, se ele tivesse ido até o fim com alguma coisa, poderia ter descartado tantas opções, sabido que elas não levam a nada, que não cumprem o que prometem, eram mulheres que tinham prazer em mostrar pernas, cochas, mas covardes, nunca deixariam que um homem lhes amassem plenamente. Era mulheres de cera, para serem vistas, até amadas, mas não possuídas, eram estátuas de mármore, ninfas gregas idealizadas por algum sonhador que nunca se deu ao trabalho de conhecer nada além de seu ateliê.

      O homem partido conheceu também o vendedor de sonhos, esse quase o enganou de vez, tinha o sorriso paternalista que parecia protegê-lo de sua desconexão, oferecia-lhe abrigo do escuro da noite onde suas discrepâncias mais o aterrorizavam. Contudo, a sala exageradamente iluminada do vendedor, era pequena demais para acomodar tantos compradores, o ar rarefeito e sujo levou o homem quase à loucura, mas para o vendedor estava bom assim. Próximas, as pessoas perdiam suas individualidades, não questionavam, seguiam os rituais, e davam tudo o que tinha para estarem escondidas do mundo pelas paredes brancas daquele lugar que nada mais era que um sepulcro caiado.
      O homem tentou muitas vezes deixar o abrigo daquela gaiola de ouro, sempre que tentava o vendedor lhe vendia um novo sonho. Que bem ele precisava dar para adquirir o sonho? O direito de se dividir, ele teria que resistir ao desejo do espírito de liberdade. Acontecia que na noite em que comprava um sonho, o homem conseguia dormir bem, corpo, alma e espírito se sobrepunham em harmonia. Contudo, na noite seguinte, o sonho se transformava em pesadelo, enquanto ele, que tinha trocado sua liberdade pelo sonho, não tinha para onde fugir senão enfrentar os demônios dos níveis mais inferiores do hades.
      Com o tempo o homem percebeu que a mercadoria do vendedor não levaria a nada, eram sonhos que não se realizavam, ilusões que na verdade só traziam benefício ao vendedor, que ficava mais rico, à medida que a pequena sala branca se enchia de compradores. Esses se tornavam escravos, enquanto o vendedor ficava cada vez mais livre, mas que satisfação pode ter realmente alguém que compra a liberdade dos outros? Mesmo que os clientes se livrassem de seus pesadelos, enquanto presos, tornavam-se cópias ruins do líder inescrupuloso, sem alma e sem espírito, que na verdade apenas queria gozar os prazeres do corpo. Sim, esse era o mistério por trás do vendedor, ele não tinha alma e nem espírito, por isso comprava dos outros, por isso parecia tão feliz, realizado e seguro, era apenas carne vazia, que não sofria, apenas barganhava o que não tinha.

      Outro homem cruzou o caminho do homem-partido de forma especial, o cego dos espelhos. Esse homem realmente era sábio, e se tornou, antes de tudo, um bom amigo do homem-partido, o sábio mostrou a ele como ver o lado bom das coisas, a essência, o que mais importa. Ele sempre tinha uma palavra espiritual para ele, mas esse sábio não era somente um homem de teorias, ele vivia na prática o que falava, e muitas vezes tentou ajudar o homem-partido. Contudo, apesar de bem intencionado, era sempre algo que exigia do homem-partido sacrifícios grandes demais, que não o ajudavam com a realidade. O cego dos espelhos era apreciado nos palco reais e virtuais deste mundo moderno, mas sua vida privada ele mantinha em segredo. O homem-partido nunca conviveu com a privacidade do cego dos espelhos, todavia, um dia, ele o pegou desprevenido e soube de seu maior segredo.
      Convidado para assistir uma das palestras do sábio, antes de começar o evento, o homem-partido quis ir ao camarim para cumprimentar o amigo. Ele entrou por um corredor, na lateral do palco, e perguntou para alguém que fazia a faxina onde era o camarim principal, o faxineiro lhe deu a direção e ele seguiu. Ao chegar próximo ao camarim, ele parou, viu então que a porta estava um pouco aberta, ele achou estranho, porque estava escuro lá dentro. Pensou então que não havia ninguém por lá, então perguntou, "há alguém aí?". Lá de dentro uma voz respondeu, "sim estou aqui, meu amigo, pode entrar", "reconheceu minha voz?", perguntou o homem-partido, "sim, claro, como não". Com a porta aberta alguma luz entrava no camarim, então ele podia ver, o sábio se movia, para lá e para cá, abotoava a camisa, colocava os sapatos, mas tudo no escuro, então ele constatou algo que o deixou estarrecido. Mesmo no escuro, uma fresta de luz entrava e atingia bem no espelho, num determinado momento o sábio se colocou em frente ao espelho, então o homem-partido não acreditou no que viu, ou no que não viu, o sábio não tinha reflexo. Ele não tinha reflexo porque não tinha corpo, mas ele não tinha corpo só na visão dele, não na dos outros. As pessoas podiam ver seu corpo, mas ele, era cego diante de espelhos, não se via. O homem-partido só percebeu isso porque o homem se colocou em frente a um espelho e mirou o espelho. Porque alguém que não se vê olha para um espelho, isso não se pode dizer, mas talvez ele até visse alguma coisa, mas não ele de fato, talvez só ficasse lá, imaginando o que poderia ser, perdido em suas meditações, enganando-se.
      Algumas pessoas cortam a mão para não pegarem em algo que elas acham errado, que as enche de culpas, para as libertar de um vício, vício que não podem escolher não ter, então se mutilam para se verem livres dele. Sim, o sábio pagava um preço alto pela sua sabedoria, ele fazia de conta que não tinha corpo, só via sua alma e seu espírito, quem poderia saber de fato o que seu corpo vivia na realidade? Quantas incoerências deviam haver entre o que seu corpo fazia e o que ele dizia que acreditava sobre alma e espírito? E vejam que ele fazia palestras sobre temas espiritualistas, auto-motivação, positivismo, era um mestre, convencia multidões, mas havia uma mentira nele, que talvez nem ele admitisse para si mesmo que existia. Não, aquele sábio não era um embusteiro, um falso, ele era bom, contudo usava de um subterfúgio trágico demais para encontrar sua coerência, seu equilíbrio, sua paz. Por mais que gostasse daquele sábio, e o homem-partido sabia que o afeto do sábio por ele era verdadeiro, mesmo assim, esse não era o caminho que ele queria para ele, isso não iria resolver seu maior dilema. Não ver, não ouvir, não seriam soluções justamente para quem tinha como maior virtude ver e ouvir demais. Fechar os olhos e os ouvidos era tudo o que o homem-partido não queria, ele desejava poder ouvir e ver tudo e ainda assim conviver bem com isso, sem segredos, sem falsidades, sem dualidades.

      Então o homem partido conheceu o poeta. O poeta não confeccionava versos, não caçava rimas, não construía canções ou resolvia tensões harmônicas, não que não pudesse fazer isso, mas ele era alguém que conhecia o homem integralmente e sabia como harmonizar corpo, alma e espírito. O poeta tomava vinho quando tinha vontade, mas não perdia a lucidez, o poeta se doava o tempo todo com paixão, mas sem possuir ou se deixar ser possuído, nunca cometendo qualquer espécie de violência. O poeta sabia da prioridade do espírito sobre tudo o mais, mas mesmo assim não se privava de confrontos com o que de mais patético e medíocre há nesta vida, ele não fechava os olhos para a humanidade dos homens, sempre tinha tempo em sua agenda. O poeta andava com os pés no chão, sem perder o foco da eternidade, o poeta parava para sentir o cheiro de uma flor, para ver a brincadeira inocente de uma criança, para ouvir a fadiga de um velho. O poeta era simples com os simples, sábio com os sábios e calado com os ardilosos, não se comparava, não criava referências consigo mesmo, ainda que elas naturalmente viessem à tona sempre que ele mostrasse sua alma. Ele não comprava e nem vendia, recebia de graça e de graça dava, a qualquer um que pedisse, sem preconceitos, contudo sempre mostrava o caminho melhor.
      O poeta dedicava longos períodos à meditação solitária, mas ainda que extremamente cansado, não dizia não ao convite de um amigo para uma refeição, o poeta gostava de festas, mesmo que soubesse que a qualquer momento sua morte seria festejada por muitos. O poeta criava sinfonias com corações saciados pela água cristalina de suas palavras, palavras que entregavam luz mesmo aos moradores mais antigos dos becos mais escuros deste mundo. O poeta enxergava a sinceridade no rico, reconhecia arrogância mesmo em alguém que nunca teve nada na vida para se orgulhar, mas era sempre elegante, não humilhava ninguém mesmo que de posse de uma verdade irrefutável, o poeta socorria o órfão e fazia sorrir a viúva. O poeta nunca dizia não, mesmo que só ouvisse e não dissesse uma palavra sequer, só o olhar do poeta já compartilhava esperança, uma nova chance de recomeçar e acertar. O poeta deu ao homem-partido o amor que ele nunca tinha recebido, conectou o ser do homem com laços de prata refinada na fornalha da generosidade, deu inteireza a um ser repartido e agoniado. O poeta foi o amigo que o homem-partido nunca teve e o pai que ele sempre necessitou, o poeta libertou o homem dos fantasmas da noite e fez isso com muita paciência, curou feridas e construiu seu caráter.

     Seres partidos, somos todos, desejos tão distintos, quanto extremados, mente que voa, coração que pesa, alma que vive, corpo que se apaga. Homens divididos, crescidos, meninos, ricos e mendigos, mulheres fáceis, mulheres tristes, difíceis, agridoces. Ninguém nunca teve o que queria, todos nos sentimos insatisfeitos, esfacelados, mal tratados. O tempo não volta e se voltasse seria tudo igual, mesmo se tomássemos uma decisão diferente daquele que tomamos no outro passado, rapidamente, numa próxima oportunidade, faríamos a mesma coisa que fizemos antes, e isso só atrasaria mais o nosso futuro. O futuro será melhor, utopia que escolhi para mim, não abrirei mão disso por nada, a esperança insiste em minh´alma, e se exalta depois de cada xícara de café que tomo, nas manhãs, nas tardes, em cada final de noite. A alegria me acha, escondido atrás dos números, da telas, das teclas, dos mundos, e me enche de palavras, de gente, de histórias, de metáforas pobres e fracas, nunca serão como as parábolas do poeta, quem me dera ser poeta, mas sou homem-partido que achou no poeta alguma integridade. Os tolos sempre chamarão o convicto de arrogante, o simples de ingênuo, o positivo de sonhador, o sábio de covarde, o crédulo de ocioso, o poeta me chamou de homem de bem, isso não fez desaparecer os extremos que trago em mim, mas os temperou, alinhando minha existência com um fim muito maior que eu.

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

__"Desenredo" (Boca Livre & Roberta Sá)



      "Por toda terra que passo me espanta tudo que vejo, a morte tece seu fio de vida feita ao avesso, o olhar que prende anda solto, o olhar que solta anda preso, mas quando chego eu me enredo nas tramas do teu desejo. O mundo todo marcado a ferro, fogo e desprezo, a vida é o fio do tempo, a morte é o fim do novelo, o olhar que assusta anda morto, o olhar que avisa anda aceso, mas quando eu chego eu me perco nas tramas do teu segredo. A cera da vela queimando, o homem fazendo seu preço, a morte que a vida anda armando, a vida que a morte anda tendo, o olhar mais fraco anda afoito, o olhar mais forte, indefeso, mas quando eu chego eu me enrosco nas cordas do teu cabelo."

segunda-feira, 25 de janeiro de 2016

_Butch Cassidy and the Sundance Kid (George Roy Hill/1969)

      Com Paul Newman e Robert Redford, a música é de Burt Bacharach, um desses caras que não fazem somente uma excelente trilha musical, eles vão além, o resultado é isso, um momento único e tocante, com imagens e sons que ficarão pra sempre em nossas memórias (música "Raindrops keep fallin on my head").

domingo, 24 de janeiro de 2016

"Ideias são à prova de balas"


      V de Vingança (2005), filme dirigido por James McTeigue, produzido por Joel Silver e pelos irmãos Wachowski, que também escreveram o roteiro. É uma adaptação da série de quadrinhos publicada pela DC Comics, a música é "Cry Me a River" (Arthur Hamilton/1953), cantada por Julie London. "Por baixo dessa carne existe uma ideia, e as ideias, nunca morrem, ideias não são só carne e osso, ideias são à prova de balas" (V). Capacidade de pensar e questionar, eis um direito que muitos querem roubar do homem, talvez o maior dos direitos, que confere liberdade mesmo a um ser humano aprisionado a tantos deveres da vida moderna, ao tempo, à necessidade constante de se informar e prosperar. 
      Os falsos religiosos e que arrogam serem donos das almas, que prendem as almas em auditórios luxuosos e adornados com ícones, sejam feitos de matéria ou de ideias, e as mantém presas com promessas de receberem muito, fazendo pouco, mas pagando bastante, querem calar o coração para que esse não perceba que tudo que os homens podem dar são cadeias com grades feitas de seus limites e vaidades. Os políticos ruins, com as mesmas intenções, têm menos originalidade, usam os dois elementos já comprovados, pão e circo, para prenderem a atenção das pessoas, enquanto sugam o sangue delas até as transformarem, não em ovelhas, mas em bodes, bodes aleijados, sem chifres.
      Bodes sem chifres nunca serão ovelhas, por mais que as vistam com hábitos religiosos e as hipnotizem com rezas, contudo, rapidamente se transformarão em lobos, trazem em si o DNA espiritual do mal de seus pais, lobos alfas, não pastores. Pastores criam ovelhas, e engana-se quem acha que ovelha não pensa, bodes não pensam, e é justamente na ociosidade que o mal ganha vida e transforma bodes em lobos. Com o tempo, os bodes, que viraram lobos, envelhecem, e os alfas terão concorrência para suas posições e poderes, novos predadores ávidos por sangue de gente que não quer questionar, apenas seguir cegamente pseudos nefilins, com o carisma de Lúcifer, altos como semideuses, sobre seus egos, de olhos brilhantes, vozes suaves, pés rápidos e mãos ágeis.
      As almas pensantes, todavia, sobrevivem às "zumbizações", teimam em conhecer e entender, não aceitam magia como poder para criar algo do nada, sabem que tudo tem causa e efeito, só o amor cria do nada, mas aí não é magia, é milagre, virtude que nenhum deus realmente possui de fato. Seguem solitários, os que não aceitam demônios disfarçados de santos, que se sentem parte de nada, porque tudo é falso, seguem buscando alguma coerência, algo que faça sentido, seguem angustiados e acusados, mas livres, livres para pensarem e serem aquilo que realmente são, e mesmo que morram suas ideias permanecerão vivas, para sempre. 

sábado, 23 de janeiro de 2016

__"I need to be in love" (Carpenters)


      A garota nerd, feia e deprimida que existe em mim, ama Carpenters, confesso... mesmo que eu não seja, mas pense que sou, nerd, feia, deprimida e... garota... 

      "A coisa mais difícil que fiz é continuar a crer que existe alguém neste mundo maluco por mim. O modo como as pessoas vêm e vão em vidas tão passageiras, minha oportunidade poderia surgir e eu talvez nem soubesse. Eu costumava dizer sem promessas, vamos manter tudo bem simples, mas a liberdade só te ajuda a dizer adeus. Demorou para que eu aprendesse que nada é de graça, o preço que paguei é suficiente para mim. 
      Sei que preciso amar alguém, sei que desperdicei tempo demais, sei que estou exigindo perfeição de um mundo imperfeito, sou tolo o suficiente para pensar que é isso que encontrarei. Portanto, aqui estou com bolsos cheios de boas intenções, mas nenhuma delas vai me consolar esta noite. Estou bem acordado às quatro da manhã, sem um amigo à vista, estou abandonado, mas estou tudo bem.
Richard Carpenter, Albert Hammond e John Bettis/1976

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

_"The City on the Edge of Forever" (Star Trek/1967)


      Para muitos, um dos melhores episódios da série Star Trek Clássica, participação especial de Joan Collins, pra quem gosta do gênero, é necessário.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Um milhão de pedaços de um milhão de estrelas


     "Não dormi bem, a comida de ontem ainda pesa no estômago, preciso parar de tomar cerveja barata. Por mais cansado que esteja, ainda assim não consigo ter um sono profundo, quando estou quase lá, desperto, como de susto, com o corpo saturado de adrenalina. Vou sair da cama, não sei pra que, mas preciso. Está quente lá fora, ainda que eu esteja com frio aqui dentro, a água sai congelada das torneiras, é sempre assim, minha vida na contramão do mundo. Carrego guarda-chuva o tempo todo e não chove, basta esquecer em casa, que cai um temporal. Onde está minha camiseta preferida? Acho que a joguei fora há uns dez anos, ou foi aquela que a minha ex-esposa queimou com o ferro de passar? Tenho certeza que foi de propósito.
      Pasta de dentes com gosto de hortelã, me lembra os anos sessenta, forte demais, fico com esse gosto na boca até o almoço, até a mortadela do lanche fica mentolada. Preciso cortar a barba, os veados me amam de barba, as mulheres me odeiam, mentira, os veados me amam de qualquer jeito e as mulheres sempre me odeiam. Este microondas não aquece mais, tomarei café morno e forte, nunca acerto a quantidade de pó, o açúcar acabou faz tempo, tenho que usar essa adoçante líquido com data de validade vencida, o gosto é horrível. Depois que saí da casa de meus pais, nunca tive pão novo pela manhã, tem as cascas que sobraram no saco do pão de forma, mas a margarina está rançosa, já devia ter jogado fora faz tempo.
      Deixa eu começar meu dia, gosto da televisão ligada, mesmo que só pegue um canal local que transmite sempre as mesmas séries antigas, que eu já vi tantas e tantas vezes. Elas me impressionam com uma boa nostalgia, quando começo a ver, mas no final é só um sentimento de perda, de não ter vivido o suficiente um tempo que não acontecerá novamente. Que mentira, achar que o passado era bom, parece bom agora, que filtramos e superavaliamos as primeiras vezes das coisas, no momento em que vivíamos era tudo carregado de culpas. Aquilo que hoje considero pouco e que acho devia ter vivido mais, no passado era sempre o ultrapassar de fronteiras proibidas.
      Nos tornamos indulgentes com o perigo, com o passar dos anos ele se torna menos temível, contudo, mais e mais insuficiente para nos proporcionar prazer. Enfim, deixo a TV ligada, o som encobre os ruídos lá de fora, o terrível som do dia do mundo exterior, por isso prefiro a noite, quando todos dormem há silêncio e podemos fantasiar mistérios, podemos nos aventurar, trapacear o tédio. Pena não conseguir ficar acordado a noite toda, um cansaço milenar me atrai para o leito, além do mais, detesto dormir com o sol nascendo. Nada mais triste que ligar dois dias sem uma noite de sono, o sono nos mata e nos ressuscita, cria a expectativa de que no novo dia as coisas serão diferentes. Eu tento me enganar, tiro as roupas, deito-me na cama, cubro-me e fecho os olhos, mesmo que não consiga dormir e acorde num outro dia velho, igual a todos os outros, um dia ruim.
      Tentarei escrever algo, vejo tantas coisas enquanto as palavras são desenhadas no meu velho notebook, ruas, pessoas, paixão, na verdade, esse é o único prazer que tenho nos últimos anos. Sexo, dura tão pouco, álcool, nem me faz mais efeito, outras drogas nunca tive coragem de consumir, um dos poucos acertos que fiz em minha vida. Vou fechar as cortinas, esse clarão que entra pelas frestas é tão incômodo, dói os olhos, ele parece que tem vida própria, não quero a luz vermelha lá de fora, realmente devem ter jogado mais carvão na fornalha hoje. Preciso da TV com som mais alto, o povo está barulhento demais esta manhã, sempre reclamando, mas sempre errando.
      Acho que não sei mais escrever à mão, tanto tempo digitando, mas vamos lá, "Não dormi bem, a comida de ontem ainda pesa no estômago, preciso parar de tomar cerveja barata. Por mais cansado que esteja, ainda assim não consigo ter um sono profundo, quando estou quase lá, desperto, como de susto, com o corpo saturado de adrenalina, ainda assim acho que sonhei essa noite, não me lembro bem o que era, mas parecia ser tão bom..."".

      Lá fora, enquanto o homem reescrevia sua história, pela 999999ª vez, as almas eram torturadas, algumas sozinhas, sentadas em cantos escuros e sujos, atormentadas por si mesmas. Outras eram surradas por gangues de espíritos negros, a única cor que conseguia se sobressair em meio às labaredas de fogo que queimavam sem consumir nada, eternas, alimentadas pelo mal que cada alma escolheu durante suas encarnações.
      Mas havia também outros prédios, semelhantes ao que o homem residia, em alguns apartamentos as pessoas, que como o homem não tinham coragem de descer às ruas e enfrentar as chamas, mas também não podiam mais passar o tempo vendo os mesmos programas de televisão todos os dias e escrevendo as mesmas coisas, olhavam vidas alheias. Elas desdenhavam de algumas pessoas, desprezavam outras, achavam-se protegidas em seus apartamentos minúsculos e cheirando a mofo, não sabiam que uma semana de ociosidade as levariam ao chão do mundo inferior. Esses espectadores inertes tinham os rostos transformados, de tão horríveis que eram, perderam qualquer traço que pudesse reconhecê-los como seres humanos, eram apenas espelhos do horror que dominava aquele submundo amaldiçoado, como reflexos não tinham qualquer originalidade neles. O homem ainda resistia ao seu destino, vendo TV, escrevendo e escrevendo.
      Às vezes, depois de muito esforço, ele conseguia escrever algo inédito, algo bom, algo que não fosse a mesma história de sempre de sua vida. Escapava alguma poesia de suas palavras, assim uma flor era criada, uma flor rara, única, com as cores das vestes dos querubins. Ela saia do notebook, flutuava pela sala, escapava do prédio, pairava sobre o inferno e continuava subindo, até sair do fogo eterno. Seu perfume era sublime, leve, mas tocante, e enquanto a flor subia, alguns dos espíritos negros ficavam atordoados com o cheiro dela, eles não viam nada, não sabiam de onde vinha o aroma, mas por alguns momentos até paravam de executar seu trabalho infame.
      Então, livre no espaço, aquela flor, única, depurada de tanta dor, se transformava em uma estrela, pequena, distante, mas que brilhava forte e linda na imensidão de um universo vazio. Essa estrela pulsava, como o coração de um recém nascido, a princípio com menos força, mas cada vez mais e mais forte, assim, quando alcançava seu limite, explodia em um milhão de pedaços. Cada pedaço caia, conseguindo penetrar o mundo das chamas eternas. De maneira extraordinária, cada pedacinho encontrava uma alma em sofrimento, penetrava nela e tocava diretamente o coração do castigado. O vermelho dos corpos virava pele nova, as faces monstruosas se acalmavam e achavam a paz, os olhos vermelhos que já tinham desistido de chorar, dos quais as lágrimas haviam secado há muito tempo, ficavam brancos, serenos.
      Os espíritos negros se afastavam, pareciam receosos, sem entender nada, não conseguiam mais continuar seu trabalho de flagelo de almas, assim as almas eram libertadas, cada uma com um pedacinho de estrela. As almas então ascendiam, ganhavam o espaço e se tornavam livres para fazerem novas escolhas e serem felizes. O escritor não sabia, mas quando um milhão vezes um milhão de almas fossem libertadas, ele também seria, só tinha que continuar escrevendo, tentando reinventar sua vida, buscando, com todo o seu coração algo de bom, de novo, de diferente, algo que pudesse ter feito valer a pena tudo o que ele viveu, isso existia, era possível, só precisava que ele não desistisse.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

__"Organ Grinder's Swing" (Jimmy Smith)


      Jimmy Smith (Hammond organ, o cara que inventou o jazz organ), Eddie McFadden (guitarra), Charlie Crosby (bateria), gravado ao vivo na França (1969), música "Organ Grinder’s Swing“ de Will Hudson, Irving Mills & Mitchell Parish (1936).

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

_Pulp Fiction (Quentin Tarantino/1994)


      Com John Travolta, Samuel L. Jackson, Uma Thurman, Harvey Keitel, Tim Roth, Eric Stoltz, Rosanna Arquette, Christopher Walken e Bruce Willis, crônicas que se entrelaçam num roteiro fatiado e sem compromisso com marcação cronológica. Violência? Bastante, mas com diálogos que são desnecessários em filmes burros e simplistas onde se explora violência por violência, mas que dão riqueza e legitimidade aos personagens, que são muitos. Um filme inteligente, atual, obra prima para rever sempre.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Antes da Terra

Prometeu
      Há muito tempo, num mundo de luz, os seres eram perfeitos, e não se entediavam com isso, nesse planeta o Senhor das Almas passeava sem esconder o rosto e conversava sem mistérios com todos. Mesmo com livre arbítrio, os seres de luz nunca escolheram caminhos egoístas, nunca se deixaram levar pela vaidade de se comparar, na comparação sempre existe rebaixamento de um e elevação de outro. Assim viviam centenas de anos em perfeita harmonia com a natureza, com os animais e com seus pares. Contudo, nessa multiplicação livre do bem, o planeta se tornou pequeno demais, então tiveram a necessidade de sair de seu mundo original. Para deixarem seu planeta natal, eles precisariam se dividir, já que não havia no universo outro lugar tão puro como o que eles habitavam, só seu planeta suportava suas magnificências. Bem, para entender isso é preciso falar um pouco mais sobre a essência desses seres.
      Cada um deles tinha, preso dentre de si, um outro eu, aquele que tomaria conta de seus corpos, caso eles optassem por uma escolha de trevas, sim, porque a capacidade de se ter livre arbítrio reside na possibilidade de libertação de uma lado rebelde, que precisa existir, para que a escolha errada seja realizada. Na verdade esses seres tinham duas almas, habitando num mesmo corpo, e como a alma que queria o bem fazia a escolha do bem sempre, eles eram mais espírito que carne. O mal não existe, a principio, por executar o mal, mas simplesmente por calar o bem, se o bem se cala, naturalmente, o mal ganha evidência. O bem é vitorioso quando toma a decisão de vencer o mal, mesmo que o mal continue existindo, contudo, o simples calar do bem já dá lugar ao mal, mesmo que o mal não se pronuncie.
      O bem precisa estar ativo, escolhendo, lutando, para que a luz vença, já o mal, na ausência do bem, mesmo não fazendo nada, já se torna vencedor, no nada já existe mal, no vazio, o que há de pior tem liberdade. O bem trabalha, o mal espreita, o bem toma iniciativa, o mal se acovarda, mesmo que a iniciativa seja não se opor, mas se afastar, o que é um movimento, e a covardia seja uma atitude intempestiva e violenta. Mas isso acontece enquanto se é carne, enquanto se espera pela terceira eternidade, que no caso dos seres do planeta de luz, é a segunda, já que eles nunca escolheram o mal e portanto não participariam de um julgamento pelo Senhor das Almas. Na primeira eternidade, contudo, mesmo os seres puramente espirituais, os primeiros seres criados pelo Senhor das Almas, tiveram livre arbítrio, mas isso é outra história.
      Se os seres se dividissem, uma alma teria que sair do corpo e habitar no espaço, enquanto a outra seguiria encarnada. Num ato de resignação e da mais pura benevolência, e como seres éticos que eram, não poderiam deixar a alma do bem viver, enquanto a rebelde, morreria, não, ser bom de verdade é dar liberdade, mesmo para quem escolhe o mal, é permitir o livre arbítrio de todos, mesmo que não pensem e vivam da maneira como aquele que se acha bom, pensa e vive. Na verdade o bom não se vangloria de sua bondade, mesmo tendo convicção de que não escolhe o mal. Então, eles fizeram o maior dos sacrifícios, lançaram suas almas rebeldes sobre um planeta, que descobriram ser o mais próximo de seu planeta original. Foi difícil fazer a escolha, todos queriam se dar em prol da maioria, mas enfim decidiram quais seriam divididos e perderiam o direito de viver encarnados em seu planeta original. Separaram o número suficiente de seres que deixasse no planeta de luz espaço suficiente para que os outros vivessem em harmonia com o universo por sete tempos de luz.
      Os seres de luz davam um valor muito alto ao seu planeta e o conservavam da maneira como ele era originalmente, quando o Senhor das Almas entregou a eles. Nenhuma animal era morto, somente vegetais eram consumidos, o que era colhido era plantado de volta, as águas eram conservadas limpas e livres, o ar, puro, as construções eram feitas respeitando o relevo da terra, vales e montes eram usados de maneira correta, sem provocar qualquer espécie de desequilíbrio ecológico. Os seres de luz não adoravam a natureza, amavam de coração ao Senhor das Almas, mas respeitavam a terra, reinos, ar e água como a si mesmos, com o afeto que tratavam suas mulheres e seus filhos, tratavam animais e natureza, eles sabiam que suas existências materiais dependiam disso e que tudo era dádiva do Senhor das Almas. Assim, quando foi necessário, e somente quando foi, desenvolveram tecnologia para viajar a outros mundos, e fizeram contato com esses mundos com a mesma consideração que tinham com o seu planeta natal. Acharam então um planeta semelhante ao seu para migrarem seu excesso populacional.
      Nesse planeta, as almas rebeldes encontraram corpos parecidos com os que tinham no planeta de luz, enquanto que as almas do bem, ficaram vagando, no espaço, ao redor do novo planeta. As almas acharam bebês de uma raça que estava chegando num ponto da evolução onde podia desenvolver suas faculdades físicas, mentais e espirituais de maneira semelhante ao desenvolvimento que os seres de luz tinham em seu planeta original. Contudo, almas rebeldes que eram, se rebelaram logo no início em seus corpos de homens, fazendo as escolhas erradas, destruindo o planeta e promovendo guerras entre si. A natureza física do planeta e carnal dos homens, sofreu com a rebeldia, os grandes jardins, as enormes, variadas e abundantes árvores frutíferas, assim como a faculdade de comunicação com o reino animal, que era dócil e não violento aos homens, e mesmo a longevidade e grande estatura dos homens, foram alteradas. Começou a faltar comida, muitos animais se tornaram inimigos dos homens, os homens passaram a viver pouco tempo, assim como se tornaram menores e fracos.
      Rapidamente a violência, injustiça e vaidade, tomaram conta da planeta, eles conheceram uma consequência do mal que os seres de luz nunca tinham provado, as doenças, do corpo e da mente, e como morriam depressa, os seres de luz tiveram que se sacrificar e mandar novas almas para administrarem os corpos. Algo que deveria ser sincronizado e levar muito tempo, acabou sendo rápido demais, assim o fim do novo planeta foi acelerado, quanto mais se enchia de gente, mais desabitado se tornava o planeta original de luz e mais almas do bem vagavam sozinhas. Essas almas nunca se afastavam de suas irmãs rebeldes, enquanto as rebeldes sempre achavam motivos para serem cruéis, egoístas, dominando sobre a carne, as almas do bem tentavam influenciar os corpos com as obras da luz, mas se venciam, o faziam com grande dificuldade.
      Esses homens, eram seres sempre divididos, frustrados, sempre insatisfeitos, mesmo que fossem mais curiosos e aventureiros que os seres de luz. Chegaram a níveis de ciência e tecnologia altíssimos, mas de forma desigual, enquanto algumas nações provavam um futuro de conforto e controle sobre os elementos, muito além daquele que o planeta de luz havia provado, em sua totalidade, outras nações viviam como selvagens, com falta mesmo de recursos básicos de sobrevivência. O planeta morria, com desequilíbrios climáticos, longas áreas quentes e desérticas e outras frias e totalmente inviáveis para a sobrevivência humana, não obstante a toda essa tragédia, alguns governos gastavam fortunas para conhecer outros planetas e fazerem guerras.
      Quando o último ser de luz se dividiu e entregou sua alma rebelde ao outro planeta, estava decretado o fim do planeta das almas rebeldes, que provaria uma terceira eternidade espiritual dramática, fruto da existência material conduzida por tantas e tantas escolhas erradas. Contudo, muitas almas rebeldes, mesmo escravas de si mesmas, tiveram a humildade de admitir suas maldades, tiveram sinceridade para assumir que não poderiam vencer sozinhas, e mesmo que passassem vidas encarnadas não resolvidas, acharam no julgamento da terceira eternidade, um veredito de misericórdia. O Senhor das Almas fundiu as almas rebeldes arrependidas com suas almas irmãs de luz e criou uma nova espécie de seres, com uma única alma, que não precisariam nunca mais passar pelo teste do livre arbítrio. Um grande mistério, que mesmo as almas de luz em todas as suas sabedorias, não sabiam, foi revelado pelo Senhor das Almas, algo que explicou a razão de duas almas num corpo e do porque de uma história de sofrimento de sete tempos vezes sete tempos de luz dividindo seres que nasceram para serem íntegros e coesos.

domingo, 17 de janeiro de 2016

__"Mais Uma Vez" (14 Bis e Renato Russo)

      "Mas é claro que o sol vai voltar amanhã mais uma vez, eu sei. Escuridão já vi pior de endoidecer gente sã, espera que o sol já vem. Tem gente que está do mesmo lado que você, mas deveria estar do lado de lá. Tem gente que machuca os outros, tem gente que não sabe amar, tem gente enganando a gente, veja nossa vida como está, mas eu sei que um dia a gente aprende. Se você quiser alguém em quem confiar, confie em si mesmo, quem acredita sempre alcança... Nunca deixe que lhe digam que não vale a pena acreditar no sonho que se tem, ou que seus planos nunca vão dar certo, ou que você nunca vai ser alguém...". Palavras positivas da boca de um cara que viveu flertando com a morte... um dos maiores paradoxos do universo, agonia e poesia em uma mesma alma, alma de poeta.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

Verdades

Musas Calíope, Clio, Erato, Euterpe, Melpômene, Polímnia, Tália, Terpsícore e Urânia

      "Os artistas usam a mentira para revelar a verdade, enquanto os políticos usam a mentira para esconde-la." (V).

      Uma luta obsessiva pela verdade, os que não querem achá-la, desejam de toda forma negá-la, esses últimos, relativistas de plantão, que arrogando parecer pós-modernos, são somente mais uma tribo construindo deuses de barro com as próprias mãos. Mas o que é a verdade, uma equação que explica tudo, um número mágico guardado por iniciados de alguma ordem secreta milenar, ou apenas algo que dá a algumas pessoas controle sobre as outras? Os que dizem ter encontrado a verdade se satisfazem vendendo caro essa verdade, contudo sabem, no fundo de seus corações, que eles mesmos não gastariam um centavo com tal mercadoria, e aí se ergue uma das deusas mais adoradas do mundo, a hipocrisia.
      Outras pessoas serão enganadas sistematicamente por anos, algumas por todas as suas vidas, essas simplesmente não podem receber a verdade, não possuem humildade para entendê-la, então, o que fazem é trocar de algozes, quando se cansam de um, acham outro, e assim vai. Mesmo que pensem que estão tendo algum tipo de evolução, apenas substituem as mentiras, por outras de nomes diferentes, mas sempre enganos, não suportariam a verdade, não gostam dela, não têm coragem para enfrentá-la. A verdade é simples, mas se torna complicada para orgulhosos, é fácil, mas os que amam as trevas a complicam, e pagam altos preços por algo que é de graça.
      As pessoas querem uma verdade para se esconder nelas, se ajeitarem e dormirem em uma alcova majestosa, construída de madeiras nobres e revestida de ouro e pedras preciosas. Contudo, quando dormem, têm pesadelos terríveis, dores e terrores de quem está perdido e não sabe a verdade sobre si mesmo, acordam num dia sem sol. Engano de quem se esconde em mentiras reais e que na verdade nunca pagou o preço para saber a verdade que mais importa, que encontra aquele que mesmo repousando em um leito humilde, sonha que é rei e acorda em paz.
      Nas minhas verdades, sempre há um fundo de verdade. Seu eu for questionado à queima roupa sobre algo, serei tentando a ser verdadeiro, mesmo que revele uma parte de mim que muitos não entendem e talvez nem queiram saber, mesmo que revele uma parte dos outros que os outros não querem admitir. Contudo, se eu estiver relatando algo, minha emoção deixará as cores mais vivas, um rosa claro se torna vermelho sangue, o negro vira cinza prateado, nunca serei repórter ou historiador, sempre poeta, poeta mente.
      Sou movido à paixão, a mais doce das mentiras, ela, não o dinheiro ou as vaidades, move o mundo. Nenhuma grana desse planeta convencerá alguém a escalar o Tibete, nenhum risco, por mais danoso, impedirá uma pessoa de se apaixonar. Apaixonar-se é poetizar a vida, só o poeta se deixa cair, sem nenhum tipo de segurança, no mundo das mentiras, mentira de acreditar que alguém possa ser tudo pra ele, que uma pessoa é a mais linda do mundo, que tudo o que o objeto da paixão faz é perfeito, sincronizado com o universo. O poeta transforma uma mulher comum em musa, eleva seres terrestres que às vezes rastejaram anônimos por tanto tempo, ao Olimpo, transformando Marias e Anas em filhas de Mnemosine e Zeus.
      Por ser mentira em que o poeta acredita piamente, se torna verdade, a verdade mais real que podemos provar nesta vida. O que é a verdade senão algo crível por alguém? O poeta não precisa de provas, crê e pronto, todos nós somos poetas, mas pra isso é preciso a coragem dos mais insanos, a imaginação dos infantes, a liberdade dos mortos. Se paixão é uma mentira que o poeta transforma em verdade através da fé, uma fé que nasce de um prazer sem limites e sem razão, sim, nas minhas verdades, sempre há um fundo de verdade, a cartesiana, o resto é poesia, mentiras nas quais acredito por estar apaixonado por você...

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

__"First Circle" (Pat Metheny)


      Algumas músicas vão muito além de agradar nossos ouvidos, de balançar nossos corpos, de resolver a mais exigente estética de nossos intelectos, elas simplesmente nos fazem voar, fazem com que nos sintamos melhores, mais fortes, capazes, elas libertam aquilo que existe de mais belo dentro de nós... claro que isso é pessoal e subjetivo...

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

_Manhattan (Woody Allen/1979)


      Levantar questionamentos sérios da existência humana com um humor pra lá de inteligente, num contexto sempre recheado de arte e cultura da melhor qualidade? Bem, assistir um filme de Woody Allen é muito mais que uma experiência cinematográfica, não bastassem o texto genial, a direção diferenciada, a fotografia incrível, o melhor do jazz ao fundo, com um elenco sempre de primeira linha que trabalha pra ele quase que de graça. Manhattan é uma obra prima em branco e preto com Gershwin como fundo musical na mais brilhante homenagem holywoodiana à big apple.

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Mentiras


  Um dia escapo, quando ninguém estiver olhando, eu fujo. Ninguém me dá atenção mesmo, mas ninguém também me deixa sair, se não faço diferença, por que me mantêm aqui? Acho que é pelo prazer de me ver presa, então eu não sou assim tão inútil, minha prisão dá a eles alguma alegria. Mas eu, pensando em fugir, fugir pra onde? O que existe lá fora? 
      Vejo o céu, o pátio, contudo, é tudo que tenho para caminhar, dos lados só os muros, afinal de contas esse é o mundo, altas paredes e um pedaço de céu. Não sei onde fica a porta, nunca vi nenhum dos cinco sair, mas as refeições são servidas pontualmente todos os dias, nos mesmos horários. 
      A faxineira é quem mais vejo, em todo o tempo está varrendo e desinfetando, aliás, o cheiro do mundo vem dentro dos recipientes de líquido azul que a faxineira uso na faxina. Mas ela deve trazer os desinfetantes de algum lugar, alguém deve produzi-los, como fazem a comida. Então, existe mais gente lá fora, que nada, eles fabricam tudo aqui dentro. Mas será que eles dormem? Não sei onde ficam os quartos deles, aparecem para me servir e somem.
      Eu tenho minha cela, fica lá no fim do corredor, no andar em cima do refeitório, da biblioteca e da sala do médico. Não entendo uma coisa, porque há tantas celas vazias se só eu moro aqui? Também existem tantos lugares no refeitório, eu escolho um diferente em cada refeição. Eles são sempre muito atenciosos comigo, mesmo que a maioria de suas respostas seja não. Lembro-me de quando era criança, havia muitos brinquedos no pátio, eu nem sabia que aqui era uma prisão, depois eles sumiram, mas apareceram no quarto aqueles objetos estranhos, isso foi logo depois que fiquei menstruada. Me disseram como eu devia usar tais objetos, mas eu não gosto, são frios demais. 
      Gosto de andar descalça, o concreto liso me dá uns arrepios gostosos, uma vez vi um homem consertando um encanamento, existe um material solto e composto de minúsculas partes, como farinha, debaixo do concreto, ficam no meio dos dedos, tive que lavar as mãos e os pés depois, mas era uma sensação diferente. Enquanto arrumava o concreto que havia sido quebrado, o homem sorriu pra mim, de um jeito que eu nunca tinha visto, havia bondade nele, não era como a cozinheira e o médico, pena que nunca mais o vi. Havia o professor, que esteve comigo até o ano passado, ele me ensinou a ler as Mentiras que estão lá na biblioteca, eu não entendo, se são mentiras, por que me deixam ler? 
      São maravilhosas as Mentiras, e eu gosto daquelas que não têm imagens, só textos, quando eu as termino de ler, eles me deixam ficar com elas, eu as coloco numa estante em minha cela. Tinha outras Mentiras na estante, aquelas que li quando era criança, essas tinham mais imagens, mas eles levaram embora quando eu menstruei. Então comecei uma nova coleção de mentiras, estórias de gente diferenciada das reais e das Mentiras infantis, que habitam lugares misteriosos, em outros tempos, não sei se no passado ou no futuro, com emoções fortes, descontroladas, obsessivos, passionais. 
      Em minhas visões noturnas eu vejo as Mentiras, toco nelas, sinto o cheiro delas, não cheiram a desinfetante, eu sonho com aquelas pessoas, tudo parece tão vivo, deliro, sinto um prazer profundo, acordo desconfortável. Sinto-me culpada depois, não sei porquê, como quando pedi para ver fora dos muros e o médico me disse que isso era errado. 
      As Mentiras são só mentiras, a realidade é outra, contudo, há algo na realidade que existe nas Mentiras, então, não podem ser mentira, é o céu, o céu não é um fim, mas uma porta. Eu adoro o céu, o concreto dos muros, paredes e chão, e o branco das roupas, da louça, dos talheres e dos móveis, me deixam tão entendiada. O céu, todavia, é maravilhoso, quantas cores, tons que eu nem sei o nome. O azul claro do dia transforma-se num negro ponteado de pontos luminosos, que piscam pra mim, o círculo da noite chama-se Lua, como os escritores das Mentiras gostam dela. 
      Nas Mentiras as pessoas se aproximam umas das outras, se abraçam, dançam, juntam os lábios em algo que chamam de beijo, ficam nuas perto das outras, e não sentem vergonha nem medo por isso. A Lua é testemunha desses encontros, os romances, eu queria viver um romance, como os das Mentiras. 
      O Sol, este é o que mais me encanta, ele cria cores espetaculares no céu, ele muda minha vida, gosto dele o dia inteiro. Logo de manhã, ele é suave, tange minha pele com carinho, tenho vontade de rir alto, me dá esperanças, eu o vejo nascendo à esquerda do meu mundo, dá pra ver da janela da minha cela. Logo que o Sol nasce eles abrem a porta da cela e eu saio correndo pelo corredor, a escada fica no extremo direito, então desço e vou ao pátio. 
      O Sol passeia pelo céu só pra mim, e quando ele cai, cria nuanças de tons multicoloridos, através das nuvens, violeta, vermelho, laranja, até morrer abaixo dos muros, eu queria que ele me levasse junto. Então, a Lua e as estrelas reaparecem, pena que não posso ficar no pátio muito tempo depois, eles dizem que é proibido. Então eu entro em minha cela e leio as Mentiras até adormecer. 
      Um dia ainda durmo e acordo no mundo das Mentiras, lá há sofrimento, injustiça, muita dor, mas lá a solidão é acompanhada e as pessoas se aventuram sempre, mesmo que seja para irem só alguns quilômetros distantes de suas moradas, mesmo que seja para ir a um daqueles bares sujos e escuros de uma noite e se entupirem daquelas bebidas que entorpecem as mentes. Lá as pessoas se machucam, mas experimentam, vivem, lá elas perdem, mas tornam a construir, lá não tem só o cheiro de desinfetante azul, mas existem jardins infinitos com árvores, flores e grama, acho que é parecido com os vegetais que me servem nas refeições. 
      Lá podemos ver atrás dos muros, navegar pelos mares e voar pelos ares, atravessando mundos. Nos mundos das Mentiras, a verdade não é uma prisão, mas é tudo o que a imaginação pode criar, lá não existem muros.”

  Enquanto a menina dormia em sua cela, um pedaço de sonho se soltou de sua alma e formou-se então um lindo passarinho. Ele tinha em suas penas todas as cores que haviam no coração da jovem e seu canto era puro como o som da harpa de um serafim. Ele pousou na ombreira da janela e olhou a para a menina, ficou assim por alguns instantes.
      Então, bateu assas e voou, passou pela janela, espírito que era atravessou a matéria, saiu do alojamento e subiu, muito além dos muros da prisão. Lá em cima, no limiar da abóboda terrestre, quase que tocando o espaço sideral, ele parou e se deixou cair. Nesse momento, sem bater as assas, apenas planando, ele viu, milhares de outras prisões, num número que não se podia contar, iam por todas as direções, por toda a Terra. Em cada prisão havia muitas celas, mas somente uma cela era ocupada em cada prisão, por apenas uma menina.
      O concreto e o branco eram comuns em todos os mundos, de todas as meninas, somente uma coisa era diferente, a coleção de Mentiras. Cada menina tinha a coleção que preferia, assim cada uma podia sonhar sonhos diferentes, nos quais as mentiras eram verdade. Os sonhos subiam, deixavam o planeta das meninas, e no espaço se transformavam em outros planetas, mundos reais, com todas as peculiaridades que haviam nas Mentiras, lugares onde havia liberdade e aventura.
      Nesses mundos as Mentiras são chamadas de livros.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

__"Onward" (YES)

   
      "Incluído em tudo que faço, há o amor que sinto por você, proclamado em tudo que escrevo, você é a luz incandescente, claramente, avante através da noite da minha vida, mostrado em tudo que vejo, há o amor que você me revela, retratado em todas as coisas que você diz, você é o dia conduzindo o caminho, avante através da noite da minha vida."

domingo, 10 de janeiro de 2016

_Blade Runner (Ridley Scott/1982)


      No vídeo, cena final do filme, lágrimas na chuva, quem vê? Como nossas dores, no meio de tantas dores deste mundo... "todos esses momentos se perderão no tempo, como lágrimas na chuva, hora de morrer"... o que mantinha o androide (ou anjo?) vivo era a ilusão de ser deus, senhor da vida, na arrogância de uma exclusividade, quando ele admitiu ser comum, mais um, uma gota de lágrima na tempestade, ganhou o maior dos privilégios, a morte, só nela há liberdade de fato... que morte singela para alguém que viajou pelas galáxias, abaixou a cabeça e se foi, como uma pequena prece levada aos céus.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Anoia

"O Quarto em Arles" (Vincent Van Gogh/1888)
      "Você é uma falsa esquizofrênica", disse-me o psiquiatra, pensei eu, "poxa, nem como esquizofrênica consigo ser verdadeira". Por que sou falsa? "Você não é totalmente louca, apenas flerta com a loucura", respondeu o médico, caramba, quando flertamos é quando mais estamos apaixonados, se eu me casar com a loucura, aí as coisas vão esfriar e acabo perdendo o interesse, como acontece em todo matrimônio. Seja como for, não entendi a vantagem que se tem de ter a loucura como uma paquera, e não como uma relação mais próxima. Então me disse o especialista, "os loucos de verdade não conseguem discernir entre realidade e fantasia", quem me dera eu fosse assim, seria muito mais fácil, me desgastaria muito menos. 
      A lucidez, essa vadia, só me engaja numa batalha sem fim e sem vitória, que me deixa cada dia mais fraca, se eu acreditasse de fato na fantasia, me entregaria a ela. Eu ficaria inviável para a vida real? Talvez, sei lá, tem muito maluco que não abre mão de sua visão distorcida da realidade e ainda assim consegue conviver com a sociedade, trabalhar, ser produtivo, mesmo manter uma família, alguns até se tornam líderes máximos de países ou presidentes de empresas multinacionais. Quanto a mim, só flerto, de longe, sem nunca poder me deitar com a insanidade, como seria bom deixar a loucura me possuir, bem fundo, de todos os lados e em todas as posições, mas eu até provei isso algumas vezes.
      Não foi como uma escolha consciente (que bobagem eu disse, quem disse que doido tem consciência de alguma coisa?), foi na crista de uma crise, a última e pior delas que tive, não, eu não saí pelas ruas sem roupas, não usei de violência com desconhecidos, não esqueci quem era minha mãe ou meu pai. Mas, meu Deus, como foi bom, o corpo parece que nos enche de endorfinas, em crises, a criatividade vai a mil, nunca escrevi tanto como quando endoidei quase que de vez. Meu rosto brilhava, minhas roupas eram coloridas, meus cabelos soltos, naturais, mesmo que meu corpo tivesse dificuldades motoras para dirigir um carro e mesmo para andar, contudo, fiquei uma década mais jovem, infelizmente depois que a crise passou, envelheci vinte anos. Aí foi quando as noites se tornaram eternas, com ou sem sol. Um período de sono dos justos? Nunca mais, a cabeça não parou desde então, nesse ponto a gente percebe que loucura não é algo meramente mental, psiquiátrico, mas é uma coisa espiritual, metafísica.
      Se fosse simplesmente dificuldade para discernir entre o que é real e o que é imaginário, tudo bem, mas por que o imaginário sempre é ruim? Por que as vozes sempre nos denigrem, nos inferiorizam? Por que são sempre demônios assassinos, não poderiam ser anjos bons? Não poderiam ser pilotos de espaçonaves que nos levassem para um mundo maravilhoso, onde pudéssemos nos transportar de um lugar para o outro somente com a vontade mental, onde se pudesse voar e controlar objetos com concentração, um universo sem dor, sem culpa, sem comprometimentos? Partido, preso entre duas vontades, habitante de dois polos opostos e absolutamente extremos, sem nunca conseguir descansar num equilíbrio, aquele equilíbrio que alguns religiosos irresponsáveis e iludidos, zens, iogues, fazedores de rezas e de jejuns intermináveis, dizem existir? Esses que falam que a força está dentro da gente, nunca realmente enfrentaram a força que está dentro deles, se descontrolada, pode destruir mundos, eu bem sei disso...
      Virou moda ser bipolar, assim como desculpa para zonas de conforto dizer que se está em depressão, a grande maioria das pessoas realmente não sabem o que são essas coisas. Uma excitação tão grande que torna o prazer dolorido, uma cosseira que não se pode coçar, um orgasmo inatingível, mesmo que se trepe horas a fio, aumenta o desejo, mas nos conduz ainda mais longe do clímax. E depois, um distanciar de tudo, a total incapacidade de se ter esperança, as cadeias que nos enclausuram num espaço pequeno, sem ar, sem luz, onde não se tem direito à nada, nem ao sofrimento. Pior que sentir dor e não sentir nada, e pior ainda e tirarem de você o direito até de ter direito à dor. Não, quem se vangloria de ser bipolar não tem a mínima ideia do que é ser bipolar, e pensar que há pouco tempo, muitos eram presos em ambientes sujos e solitários por causa disso. Hoje o que me prende é a quetiapina, quando penso que nunca mais poderei dormir sem tomar um pouco dela, isso me deixa maluca, mas eu não sou maluca, sou uma pseudo-maluca, grande consolo, esse...

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

__"Me Deixas Louca" (Maria Rita)


      Maria Rita disse que a melhor maneira que tinha para manter viva a memória de sua mãe, mãe com quem pouco conviveu, era cantando... reencarnação existe, quando vivemos e revivemos nos filhos, netos, bisnetos, até que o universo permita... bela demais essa canção.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

_All That Jazz (Bob Fosse/1979)


      Bob Fosse ganhou tudo, Tony (teatro), Emmy (música) e Oscar (cinema), dentre outros, esse filme é auto-biográfico, apresenta um coreógrafo e diretor (interpretado por Roy Scheider de "Tubarão"), flertando com o anjo da morte (interpretado por Jessica Lange), um dos meus filmes favoritos, é trágico, é cômico, é tocante, é completo, muito mais que um musical. O vídeo é da abertura do filme, música "On Broadway" (George Benson).

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Sorria, você está sendo filmado

"1984 - The Movie" (do livro de George Orwell)
      Não quero sorrir, por favor, não me filmem.
      Lembro-me de um filme ("Mystery Men"/1999) onde um super-herói tinha um super poder, ele ficava invisível, mas só quando os outros não estavam olhando. Que vantagem havia nisso? Na história eles acharam um jeito de usar esse poder quando precisaram que alguém passasse por um lugar que era vigiado por um circuito interno de televisão. O tal super-herói não foi detectado pelas câmeras porque não estava sendo olhado diretamente por olhos humanos, só por máquinas. Pois é, ninguém é inútil, em algum momento, de alguma maneira, seremos necessários, é pra fazer algo que ninguém mais pode fazer, algo que até então podia até ser considerado medíocre, idiota, sem utilidade.
      Mas como sobreviver até esse momento? Como esperar até que ele aconteça? Como vencer os gritos da multidão dizendo por anos que nossa vida não tem significado, que não servimos pra nada, que somos losers? Como resistir nadando, com as ondas fortes batendo contra os nossos rostos, impedindo-nos de de respirar, salgando nossos olhos, num oceano sem fim de reveses e vicissitudes? Muitos não sobrevivem, se matam antes disso, aos poucos, com mágoas e frustrações, na solidão dos nunca entendidos, apenas suportados, não amados, mas tratados como crianças ou doentes mentais. Outros alcançam esse momento, mas fracos que estão, nem se alegram com ele, enquanto todos estão dançando e cantando ao redor da fogueira, satisfeitos com o calor e a luz da madeira queimando, olhando para baixo, eles olham para cima, para o céu negro, sem estrelas e sem lua, sentindo o frio do espírito, imóveis, indiferentes.
      Não quero sorrir, por favor não me filmem, será que tenho esse direito? Acho que não, as câmeras estão ligadas por todos os lados, nos corredores dos shoppings, nos postes das ruas mesmo à meia-noite. Saudade de quando meia-noite era área vip de monstros, mister Hyde podia dançar e cantar sem ser observado e maldizido por pais de famílias, esses já estavam no sono rem no conforto de seus lares, ao lado de suas esposas frias para eles, não para o mundo, guardando suas crias cheirosas e bem agasalhadas, projetos de hipocrisia. Hoje à meia-noite caminham livremente monstros de boutique, falsas vampiras que ouviram algum falso rock e se encantaram com o vídeo-clipe em hd de um falso artista, durante mais uma de suas tardes mofadas, dentro de suas encarnações no sense, crendo que o caos é a falta de sinal da tv a cabo ou a ausência de wi-fi. Esses pseudo-jovens, que já nasceram decrépitos, mesmo sem ter sentido na boca o doce sabor de um grande erro que se comete por paixão, querem todos os direitos, mas não se submetem a deveres, e passam suas existências aprisionando as almas em selfies e vídeos caseiros, achando-se Kubrick ou Glauber, são menos que Ed Wood. Não, não quero sorrir, não me filmem, se você prestar mais atenção, não me verá, o que eu importo pra você? O que importa a você?

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

_Taxi Driver (Martin Scorsese/1976)


      Com Robert de Niro e Jodie Foster, trilha sonora de Bernard Herrmann, trabalhou com Alfred Hitchcock... me acho nesse filme, o solo de sax do tema, noite na cidade grande, lado negro do ser humano despido por um homem transtornado procurando uma razão para viver...

domingo, 3 de janeiro de 2016

Menino

"Contatos Imediatos do Terceiro Grau" (Steven Spielberg/1977) 
      Vejo meu passado, vejo uma criança, e vejo-a mesmo no meu presente, não vejo o futuro, não mais que o entardecer do dia de hoje, não além desta madrugada, quando tentarei sonhar. Este quarto é tudo o que tenho, meus livros, meus instrumentos, meu computador, as meninas estão longe, estão na realidade, elas ainda sonham, todas as três, mãe e filhas. Elas pisam o chão da casa, riem, conversam, dormem e acordam, pisam o mundo, estudam, trabalham, eu? Flutuo olhando o meu passado, vejo uma criança, vejo-a triste, excitada, deprimida, correndo, caindo, se machucando, sentindo, pensando, possuída pelo desejo, frenética, ferindo, se apossando do que não é seu.
      Essa criança nunca foi e nunca será como as meninas, elas são felizes, o menino, não. O menino sente-se nu no meio da rua, na sala de aula, no escritório, saiu despido de casa e não percebeu, agora todos veem e zombam dele, mas disfarçam seu escárnio, sussurram, se o avisassem pelo menos ele sairia da presença dos homens e cobriria sua nudez.
      O menino segue envergonhado, sozinho sempre, mesmo que algumas meninas tenham feito companhia a ele, por algum tempo até o tenham amado, mesmo que alguns meninos o tenham amado, secretamente, desejando seus pequenos pés, brancos e lisos, seus trejeitos de veado. Ele sempre foi amigo delas, as meninas intelectuais, com pênis ou não, já os homens, com ou sem vagina, esses sempre o odiaram. Ele tem medo das mulheres inteiras, amantes que se deitam não pra dormir, em qualquer lugar e de qualquer jeito. Não tem medo, contudo, daquelas três, elas são anjos, diferentes de todos no planeta.
      Mas seria mesmo medo o que ele tem, ou inveja? Inveja de quem é mulher, se ele fosse uma, seria desejado, cuidado, como tal ele teria direito a fraquezas, a uma alma sensível, como mulher ele poderia ter o abraço de um homem, mas não de um marido, de um pai. Pai, isso é o que eu mais quero, mas nem Deus, com todo o seu amor e compreensão, pôde me amar e me compreender como eu quero. Eu quero demais, quero errado, eu quero e não dou nada em troca, eu não sei amar, por isso não sou amado, nunca serei.
      As mulheres, ah, as mulheres, elas criam flores com sua respiração, produzem perfume ao passar, se apossam e não usam, e não reclamam os tolos homens, que usam, mas nunca podem possuir. As mulheres são almas livres, mas somente as mulheres de alma e carne, não os mutantes. Eu sou mutante, mistura estranha de sei lá o quê, pedaços de pedaços do avesso, do avesso e do avesso, queria ser Caetano ou Chico, mas sou um Zé ninguém, sou punk, não jazz, implodindo, nu de mim, pobre menino.