sexta-feira, 1 de abril de 2016

__"What's Going On" (Marvin Gaye)


      Uma das almas mais sensíveis e belas que já pisaram este planetinha, pena que ele não entendeu sua importância, pena ter morrido como morreu, mas a música ficou, para sempre...

      "Mãe, mãe, há muitas de vocês chorando, irmão, irmão, irmão, há muitos de vocês morrendo, você sabe que nós temos de encontrar um meio para trazer um pouco de amor hoje. Pai, pai, nós não precisamos agravar, veja, guerra não é a resposta pois apenas o amor pode conquistar o ódio, você sabe que nós temos de encontrar um meio para trazer um pouco de amor aqui, hoje...".

quinta-feira, 31 de março de 2016

_8 1/2 (Fellini/1963)

      "Oito e meio é um filme autobiográfico, com muitas cenas retiradas da vida do próprio diretor. Segundo o próprio Fellini, algumas cenas foram concebidas através de seus sonhos. O título do filme é uma referência à carreira do próprio diretor, que até então já havia dirigido seis longa-metragens, dois episódios de filme e havia co-dirigido um longa-metragem. Fellini chegou a cogitar a possibilidade de escalar o ator Laurence Olivier como o protagonista de Oito e meio, mas acabou optando por Marcello Mastroianni
      O filme retrata a crise de criatividade de um cineasta chamado Guido Anselmi, que demonstra um certo esgotamento no seu estilo de vida e resolve se internar em uma estação-de-águas para buscar inspiração. Usa de uma estratégia engenhosa para contornar o bloqueio criativo que—conta-se—o próprio Fellini estaria sentindo: contar a própria dificuldade de realizar um filme. E ainda obter o prestígio de fazer um filme metalinguístico, que usa a linguagem do cinema para comentar um filme que seus personagens estão fazendo. 
      O filme tem grandes influências da psicanálise jungiana, da qual Fellini era um entusiasta. Um exemplo é o grande foco nos sonhos do protagonista para explicar sua persona e acontecimentos de sua infância. O uso da fotografia preta e branca também serve para reforçar o conceito jungiano de sombra." Wikipedia

      Um mestre dos mestres maiores, que precisa ser visto por todo apreciador sério de cinema.

quarta-feira, 30 de março de 2016

morte, desconexão, solidão

As Hespérides eram as deusas gregas do entardecer e da luz dourada do crepúsculo. As três ninfas eram filhas de Nyx (a Noite) ou do titã Atlas, o carregador da cúpula celeste. A elas foi confiado o cuidado da árvore dos pomos de ouro, presenteada a Hera no dia de seu casamento por Gaia (a Terra).
      Prometi a mim mesmo que seria honesto tanto quando eu acho que posso ser nesses trinta textos, que desnudaria minha alma por completo, sem pudores ou receio de desapontar alguém sobre aquilo que realmente sou. Obviamente não contei tudo, não porque não sei ou não quero, mas porque sempre há limites, e muita coisa sobre nossas intimidades a maioria das pessoas não entende e nem quer entender, isso também poderia fechar portas que quero manter abertas. Que portas são essas? As das minhas amizades mais queridas, poucas, mas especiais, não necessariamente as mais longas, e surpreendentemente também muitas que resistiram ao tempo e às mudanças de todos nós. Sim, porque podemos nos apaixonar por alguém que não existirá mais no mesmo corpo, daqui a alguns anos, outros porém, poderão se transformar em almas deliciosamente interessantes daqui a algum tempo.
      Na intenção de ser sincero, brinquei com a morte, com a desconexão e com a solidão. O que é melhor: se apaixonar ou temer? Não consigo seguir apaixonado quando perco o medo, o desconhecido é que me prende, o imprevisto é que me atrai para perto. A poesia torna o anjo da morte, a psicose da desconexão e o destino à solidão, jovens tão lindas e pueris quanto pervertidas e astutas, como as almas tão velhas quanto o mundo que possuem. Mas do que se tratam esses textos senão de poesia? Como tal é fantasia, mesmo que nos conduzam ao horror, ao pior de todos os pesadelos, aquele cujo monstro é tão terrível que não pode ser visto. Pode ser sentido, bem próximo, atrás de nós, se aproximando, mas quando olhamos não o vemos, ele já se moveu para a nossa frente, e se nos viramos novamente ele se moverá e assim permanecerá, sempre invisível.
      Será que é isso que encontramos quando nos desnudamos de tudo? Morte, desconexão e solidão? Não, não sou um suicida maluco e solitário, tenho uma família linda, uma mulher completa e filhas perfeitas, para mim são tudo. Talvez seja por isso, por essa segurança que funciona como uma corda, forte e bem amarrada, que eu me permita, segurando nela, descer até o fundo do poço, abrir o alçapão e caminhar pela rede de túneis secreta que existe no underground da minha alma. Eu sei, que se precisar, terei à mão a corda, ela me guiará até o alçapão, e com ela poderei subir e retornar à realidade. Mas por mais que eu tenha lindos sonhos na realidade, os remédios não me deixam dormir para sempre, é preciso acordar para os sonhos da demência e é neles que as três jovens de almas velhas residem, elas sempre estão me esperando com largos sorrisos, cínicas, caladas, curvando seus indicadores e me chamando.
"O Jardim das Hespérides" (Frederick, Lord Leighton - 1892)
    Penso que é melhor sermos honestos com o que realmente somos, para não sair por aí enganando-nos, buscando soluções que não existem, viciando-nos em mentiras, seja o prazer, sejam drogas, sejam ideologias, que só nos faz pessoas piores, que se colocam como proprietários de curas mágicas. Às crianças que se ensine tudo sobre o mundo e a vida, que lhes demos as doses diárias de um pouco de ilusão, de fantasias, de crenças, não para enganá-las, mas para que elas tenham a visão mais abrangente possível de tudo o que chamamos universo, seja o visível, seja o invisível. Ensinemos a elas ciências, todas, artes, todas, religião, sim, mas sempre com respeito, com cuidado, para que elas não se tornem equivocados que acham saber mais que os outros. Se as certezas forem encontradas, com facilidade na superfície ou após duras escavações nas profundezas, que nossas crianças aprendam a guardá-las para si e depois pô-las à prova.
      O pior dos males, contudo, aquele que machuca inocentes, aquele que nos faz predadores egoístas e cegos destinados a arrancar pedaços da própria carne, esse flagelo, que todos guardamos dentro de nós e que precisa ser controlado a todo custo, não precisa ser declarado em público, talvez nem os melhores amigos mereçam essa desgraça. Eis aí o maior trabalho desta vida, aquele que suga a maior parte de nossas forças: manter o monstro que nos habita bem preso. A custo de fé? Sim, para os que têm fé. A custo de vodca? Sim, enquanto tiverem fígado. A custo de arte? Sim, para os que podem acordar na demência, observar a morte, a desconexão e a solidão, mas não ceder aos seus desejos, antes fazer poesia. A custo de tudo o que limita o pior dos males ao nosso próprio coração, já que é por se acharem no direito de libertar monstros, é que tantos machucam a muitos, governam países e são adorados por idiotas em todo o planeta, só para compensarem um ego que não aceita a morte, a desconexão e a solidão nossas de cada dia.
      Flerte com a loucura, mas não se case com ela, mantenha uma relação platônica com a demência, à distância, até fantasie tomar a insanidade nos braços e beijá-la, faça isso nas noites em que acorda morto, desconexo e solitário, mas quando sonhar de realidade, realize o melhor que pode para manter um amor de verdade ao seu lado, para ensinar às crianças sobre tudo o que há de bom e simples nesta existência. A vida é um doce engano, um faz de conta que deve ser levado a sério, um monte de mentiras que na fornalha da paixão resultam numa pepita de verdade, verdade essa que não pode ser vendida, pois só o fato de falarmos sobre ela com alguém, já a dissolverá em milhões de moléculas. Certo e errado? Claro que existem referências, mas não para serem comercializadas como peixes velhos e fedidos numa feira livre, são pérolas, raríssimas, únicas, que devemos guardar dentro do coração. Que os outros, que estão do lado de fora de nós, tirem suas conclusões, vejam, se é que querem ver, aprendam, se é que temos algo a ensinar. Mas que o tempo nos leve a ser mais mansos de mente, mais calados de fato, mas sempre vivos, questionando, meditando, com os pés firmes no chão, mas com o coração nas portas da morada do pai e criador de todos os espíritos.

terça-feira, 29 de março de 2016

__"Fire and Rain" (James Taylor)

      "Na manhã de ontem me avisaram que você se foi, Suzanne, os planos que eles fizeram deram um fim em você, eu andei por aí de manhã e escrevi essa canção, só não consigo me lembrar pra quem eu enviaria. Eu tenho visto fogo e chuva, tenho visto dias ensolarados que eu pensei que nunca acabariam, tenho passado horas solitário quando não consigo encontrar um amigo, mas eu sempre pensei que eu veria você de novo", fala muito comigo essa canção que James Taylor fez para uma amiga de infância que cometeu suicídio. 

segunda-feira, 28 de março de 2016

_Sinais (M. Night Shyamalan/2002)

        Com Mel Gibson, Joaquin Phoenix, Rory Culkin e Abigail Breslin, escrito, produzido e dirigido por M. Night Shyamalan, esse é um diretor cujo estilo me agrada, consegue fazer muito com poucos recursos e uma câmera na mão, ao estilo dos gênios, ele é jovem, ainda tem muito a mostrar, mas é alguém a se acompanhar (um dos filmes dele menos considerado é um dos meus prediletos, "A dama na água" (2007)).

domingo, 27 de março de 2016

Paraná

       Debaixo do mar, o céu azul daquela tarde de inverno tirava meus pés do chão, meus problemas levitavam e diluíam-se naquela neblina salgada. Por pouco meu espírito não desencarnava e tomava outro corpo. A praia estava vazia, quem vem ao litoral no frio? Não a maioria dos brasileiros, viciados no verão, no carnaval e na cerveja gelada. Eu sempre preferi o vinho seco na temperatura ambiente de noites de inverno, comprime meu alma ao mesmo tempo que esvazia as ruas deixando-me protegido das pessoas. Mas não comprime pra me sufocar, torna-me coeso, as ideias se conectam, os sentimentos se entendem e acho a poesia, pão da vida para meu espírito tão angustiado. A praia molhada após uma chuva de inverno, me livra do desconforto da areia invadindo meu corpo. Não é Brasil quando o litoral está frio e chuvoso, e eu que sempre me senti habitante do norte da linha do equador trazido contra a força para o sul, me acho em meu país de origem, sinto-me mais perto de casa.
      Minha mãe acordava cedo, desde hoje até antes do meu nascimento é assim. Meu pai saía e se protegia no conforto de um escritório, com o luxo de uma garrafa térmica com café sempre novo, as conversas frívolas de amigos e os papeis obsessivamente arrumados sobre a mesa. Minha mãe fugia de si mesma no ofício pesado de dona de casa dos anos cinquenta deste país. Puxar aquela água congelada de poço naquela cidade do norte do Paraná em plena estação mais fria do ano, não era trabalho para uma dama, não para uma dama esposa de homem de escritório. As camisas sociais brancas de algodão deixadas na noite passada no tanque, faziam parte de um bloco sólido de gelo que precisaria de algum tempo debaixo do Sol para terminarem de ser lavadas. O bebê chorava enquanto vigiava o leite na vasilha sobre as brasas do fogão à lenha. A mulher corria com o balde de água na mão para chegar à cozinha antes que o leite subisse. O bebê não chora mais, desistiu. Naquele fim de mundo não havia mar azul, só terra vermelha que encardia até a alma, mas era boa pro café.
      Preciso andar, devagar, o Sol está quase sumindo no horizonte, como meu desejo. Houve momentos que quem mandava em mim era o desejo, eu não tinha controle sobre ele. Aquele que carrega uma ferida enorme e aberta no peito, desde a infância, quando descobre o sexo, vicia-se nele. Na minha juventude, eu ainda não havia me rendido ao doce torpor do álcool, preservei meu fígado, mas castiguei outros membros. Maconha, cocaína nunca me encantaram, assim como adquiri nojo de prostitutas, após usá-las poucas vezes, também tinha aversão a injetar dentro do meu corpo uma fumaça ou um pó, os quais eu não sabia bem o que eram. Mas eu não queria só prazer, queria me apaixonar, totalmente, por alguém que me desse seu corpo, mas que tivesse uma mente inteligente e uma alma de artista. Nunca tive paciência com mulheres burras e que só possuem beleza física como argumento de presença social. Agora, o Sol se põe, a paixão se apaga, sim, numa dessas esquinas do mundo, numa noite mágica, a vida ainda pode me surpreender, eu acredito nisso. Então, sem que eu esteja esperando, ela aparece, não mais uma menina, não mais inexperiente, mas madura, com o corpo envelhecido pelo mundo, mas ainda assim com um coração ardente, ávido por compartilhar a si e aos seus sonhos comigo.
      No Paraná, o Sol nunca se punha, porque ele nunca nascia, parecia seis horas da tarde, o dia todo. Dentro da casa, era sempre meia-noite e os monstros andavam por ela, observavam-me no escuro, à porta de meu quarto, enquanto eu tentava dormir. Mesmo pesado de cansado, não podia fechar os olhos, se eu os fechasse, o homem sem rosto sairia de sua vigília encostado à porta, e viria até a minha cama. O que ele faria? Violentaria minha mãe, que dormia comigo no escuro daquela casa infestada de camundongos, com as vigas de madeira sobre minha cabeça gemendo. A casa parecia ter vida própria, era a quarta entidade que vivia comigo. Lá fora, o vento gelado surrava as paredes de madeira, entrava pelas frestas, talvez fosse melhor dormir ao relento, na grama ao redor da casa, seria menos assustador que lá dentro. Mas eu tinha meu amigo invisível, ou melhor, minha amiga, era pequena, parecia a fadinha do Peter Pan. No centro espírita, as pessoas diziam que não era um produto de minha imaginação, mas um espírito humano desencarnado tentando se comunicar comigo. Os espíritas sempre dizem que eu tenho mediunidade, hoje meu psiquiatra chama isso de esquizofrenia, trezentas miligramas de quetiapina dão conta dos meus fantasmas, que agora não são mais fadinhas do Peter Pan, mas esboços preservados em minha mente daquilo que eu ainda acho que são meus pais. Pobres diabos, no fundo nunca quiseram ser tão ruins, faziam o que podiam, faltavam-lhes referências? Sim, no início, mas depois continuaram desprezando aquelas que a vida lhes deu, para eles sempre pareceu mais fácil sofrer que ser feliz. Passaram a vida inventando dores.
     Estou cansado, melhor voltar daqui, vou pela calçada, já está escurecendo. Praia no frio fica incoerente, sempre que vejo filmes europeus, onde as pessoas caminham à beira-mar agasalhadas, de botas, me parece estranho. Talvez seja exatamente por isso que eu gosto tanto disso, é anormal, combina comigo, louco de pedra. O vento me alivia, as vozes de fora se calam, ficam só as de dentro, essas são mais generosas, essas me inspiram. Quando eu chegar ao quarto vou escrever, mas não quero voltar logo pra lá, está bom aqui. Casais de velhinhos, magros, saudáveis, não têm hora nem clima pra eles fazerem suas caminhadas, parecem nem sentir frio, mesmo agora, estão andando pela calçada, num ritmo disciplinado. Que pressa têm eles, a essa altura do campeonato? Está aí algo com que nunca me preocupei, minha saúde física, fazer exercícios, frequentar academia, isso nunca me atraiu, mesmo que eu goste bastante de andar a pé. Prefiro me ocupar com a alma e com o espírito, eu queria ser isso, alma e espírito, mais nada. Flutuar por aí como um voyeur, não me entenda mal, não quero espionar os outros transando, não mais, quero espiar as conversas, as conquistas, os romances. Quero ver o que ela faz quando ele não está olhando, como ele olha para ela, por trás, quando ela sai da mesa para ir ao toalete se maquiar. Quero ver o sorriso dela olhando para o bumbum dele, quando ele se levanta para ir ao banheiro. Ok, confesso, posso espiar um pouco as intenções sexuais das pessoas, mas nada explícito, quando entrarem no quarto ou alguma parte mais íntima do corpo, dele ou dela, aparecer, vou embora, Que covardia a minha, ser apenas um observador, tentar abster-me de viver, para quê? Para alegar inocência? Culpa, isso é o que eu carrego, culpa que nem minha é.
      Meu pai sempre foi um curioso das coisas espirituais, pena que ele só levou seus questionamentos para o capeta. Mesmo que procurasse sinceramente pelo bem, seu espírito atormentado dialogava com o mal em frente ao espelho, eu sempre o via falando sozinho, com o rosto alterado. Ele parecia sentir tanto ódio. Aquele rosto do espelho é a cara dos meus piores pesadelos, até hoje. Como é meu pai, hoje? Ele passa dos oitenta anos, está doente e fraco, mas dentro dele ainda reside o monstro da porta do meu quarto, o qual, se eu fechar os olhos, pulará sobre mim com violência. Isso é verdade? Claro que não é, são apenas meus delírios, parecem ruins? Na verdade é uma fuga prazerosa, nenhum maluco apela para a loucura porque ela é ruim, se fosse ruim ele não a viveria. Assim ele não tem escolha, já que todas as escolhas que fazemos na vida é em busca de prazer, dê a ele o nome que for, mesmo que seja negação de prazer. O suicídio é o prazer extremo e que se torna a única opção para alguns. Minha loucura é isso o que eu sinto, o que eu quero sentir, é o melhor que posso sentir. Com o tempo a gente entende que a verdade sobre a vida não é a mais lógica, a mais lúcida, a mais racional, a mais real, mas é aquilo que sentimos e que no final das contas é o que residirá para sempre dentro de nós. Pastores, padres, sacerdotes, monges, psiquiatras e amigos, podem tentar nos convencer que nossa mente é nossa única cela, que precisamos nos libertar de nós mesmos, aceitar as coisas e deixar que elas sigam para fora de nós. O sentimento, todavia, é mais forte, restos de tudo aquilo que disseram que somos, que nós dissemos para nós mesmos que somos, a verdade é isso, o que sentimos.
      Estou chegando ao hotel, antigo, decadente, mas bem localizado, gosto dele. Eu me mantenho atualizado, mesmo que esteja caindo aos pedaços, gosto de tecnologia, de internet, só me resguardo ainda desses celulares mais caros. Ainda prefiro viajar pelo mundo virtual no conforto do meu quarto, com a janela aberta para a cidade real, mas na frente de uma tela grande e com um teclado adequado para digitar meus textos. Decadente, mas bem localizado, não me julguem pelo meu falar pesado, pela minha constante falta de paciência com a humanidade, pelas minhas roupas surradas, pelo meu cabelo comprido e pela minha barba por fazer. Conheçam-me pelos meus textos, é o que tenho de mais delicado, neles eu procuro ser elegante com todos, neles o amargo adquire charme, a dor, ganha asas e foge da gaiola, o prazer é muito mais que um orgasmo, a balzaquiana com alguns quilos a mais, é uma princesa que ainda espera o príncipe, mesmo que ele seja eu, uma criança triste nascida em 1959 no estado do Paraná.

sexta-feira, 25 de março de 2016

_Déjà Vu (Tony Scott/2006)

      "Thriller policial, com elementos de ficção científica, dirigido por Tony Scott, produzido por Jerry Bruckheimer, e co-escrito por Bill Marsilli e Terry Rossio. O filme é estrelado por Denzel Washington, Bruce Greenwood, Matt Craven, Jim Caviezel e Paula Patton como os personagens principais, mas também incluem atores como Val Kilmer e Adam Goldberg. Déjà Vu relata a história do agente da ATF Douglas Carlin, que viaja no tempo em uma tentativa de evitar um atentado terrorista que acontece em Nova Orleans e salvar uma mulher que ele se apaixona, Claire Kuchever. O filme foi gravado após os acontecimentos do furacão Katrina." Wikipedia

quinta-feira, 24 de março de 2016

pra não dizer que não falei de Deus

      Este mundo tem regras, fixas e que valem para todos, o que as pessoas pensam, acreditam ou fazem com respeito ao "outro" mundo, aquele que existirá, da maneira que for, após a morte física, não interfere neste mundo, não com relação às coisas que ele oferece para que se interaja com ele de maneira equilibrada. Quando me refiro ao mundo, me refiro à flora, à fauna, à terra e ao seu clima, bem, esse mundo não é nosso inimigo. É possível conviver com ele, retirar dele os meios para se sobreviver materialmente e ainda assim não violentá-lo? Seria, contudo, nós homens, diferentes dos outros animais, somos egoístas, somos cruéis e violentos, assim, como que querendo nos vingar do destino que a todos nós é infligido, a morte, fazemos por levar o mundo também a isso. Nós conseguiremos matar o mundo? Em longo prazo não, o Sol ainda queimará e brilhará por milhões de anos, mesmo que desequilibremos as estações, firamos a superfície do planeta, sujemos as águas, extingamos os animais, em médio e longo prazo, o mundo se restabelecerá. Isso, porém, não a tempo de ser útil à geração e algumas após ela, que o trataram mal, em curto prazo colhemos todo o mal que fazemos e que dificulta bastante uma sobrevivência tranquila por aqui.
      Então, você me perguntará: "o que eu tenho a ver com isso? Não poluo o ar, não corto árvores, não estrago as águas, não mato animais". Sim, se você, como indivíduo não faz isso, não prejudica a coletividade, mas prejudica a si mesmo fazendo coisas que talvez só você sabe que faz. Se obedecer às regras, terá uma vida próspera, pra você e para seus relativos, caso contrário, sofrerá as consequências. Nós temos muita dificuldade de entender uma coisa, o planeta não faz conosco, o que fazemos com ele, nós o exploramos e não devolvemos algo em troca. O mundo não, ele nos inclui, ele sabe que fazemos parte disso tudo, uma parte importante, aliás, como animais inteligentes que somos, ou melhor, que deveríamos ser. Assim quando fazemos mal ao mundo ou a outro homem, desobedecemos regras, nessa disposição algo nos será tirado também como reação.
      Um inocente que sofre por causa do egoísmo de um homem consciente, subtrairá de alguma forma algum privilégio humano neste mundo. Nós podemos ignorar nossas crianças, mas o planeta não ignora, nós podemos tratar de maneira injusta pobres, doentes e velhos, mas o planeta chora por cada violência que impomos aos mais frágeis, nós podemos tratar com diferença ou indiferença àqueles de pele com cor diferente da nossa, mas o planeta vê a todos de maneira igual, dignos às mesmas regalias.
      Hoje a sociedade dita civilizada fala em inclusão, prega isso como uma religião em todas as áreas e esferas, mas o mundo natural, sempre respeitou essa regra, nunca menosprezou nada e nem ninguém. E se ainda assim você se escusa de ter feito mal a outros, saiba que as lágrimas mais amargas do planeta, são pelo mal que fazemos a nós mesmos, quando violamos nossa inocência, traímos nossa essência, furtamos de nós a paz. Sim, o mundo inclui todos em seu sistema de vida natural e que deveria ser intermitente, principalmente eu, o indivíduo. Se podemos nos isentar de uma árvore derrubada na Amazônia, de um rio poluído na África ou do ar desgraçado na China, nós mesmos não seremos poupados pelo mal que fazemos à nossa própria carne.
      Mas você ainda diz, "fiz tudo certo e nada deu certo pra mim", meu querido, se tudo está errado é porque você fez tudo errado. A pergunta é: o que queremos neste mundo? O que esperamos de nossas existências aqui? O que desejamos ser, de verdade? Veja que eu não fiz as célebres questões existenciais: de onde viemos e para onde vamos, qual é a razão da vida? Não, estou tentando desconsiderar qualquer coisa que possa prender o texto a conceitos metafísicos, a possibilidade de sermos predestinados por alguma forma de ser superior, dirigidos por uma energia maior, não, a questão é simples e prática. Estamos aqui, teremos que viver aqui por um tempo, nesse tempo encontraremos pessoas, faremos amigos, desafetos também, muitos de nós casaremos com um outro ser, igual nós, com o qual estabeleceremos uma aliança maior e como fruto disso, geraremos novas vidas. Entre sairmos das barrigas das mães e sermos enterrados a sete palmos de terra, precisaremos sobreviver, assim, como passaremos esse período de tempo da melhor maneira possível?
      Bem, as regras que falei no início, dizem respeito a isso, elas são indiferentes a qualquer espécie de interpretação espiritual que podemos fazer de tudo, simplesmente porque elas não vão mudar por causa disso, elas só dependem do que fazemos para caminhar em equilíbrio com este mundo, com a natureza e com o tempo. Agradecer a uma divindade por algum tipo de prosperidade, só afetará as dádivas que o mundo dá se o agradecimento transformar o agradecido em ocioso, fugitivo de obrigações que são suas e de mais ninguém, jogando na divindade um trabalho que é do homem. Por outro lado, amaldiçoar uma divindade só afetará as dádivas que o mundo dá caso essa ingratidão se transforme em álibi para adquirir direitos abdicando-se de deveres, desequilibrando a balança do plantar e colher.
      Não, não estou falando de coisas subjetivas, de experimentar dentro de si, no coração, nas entranhas, uma satisfação inexplicável por simplesmente existir. Esse sentimento não depende da obediência às regras desse mundo, por mais incrível que pareça. Muitos retiram do mundo o mínimo para sobreviver, e ainda assim se sentem as mais agraciadas das criaturas, outros, contudo, vivem em luxo e riqueza, e ainda assim se veem constantemente insatisfeitos. Aos primeiros, o planeta deu muito menos que eles poderiam receber, simplesmente porque eles se satisfizeram com o que tinham, esses não temem a morte, mas encaram a conquista desse mundo de forma mais tímida. Os últimos, recebem tudo, não há mais pra ser dado a eles, e mesmo assim continuam exigindo mais e mais, se pudessem viveriam eternamente neste planeta e tentam fazê-lo ocupando-se da saúde, dos corpos, muitos mais que dos espíritos.
      As duas primeiras regras do mundo são simples: trabalhe e negocie. Aproveite cada minuto debaixo do sol, e muitas vezes mesmo aqueles sob o luar, esforce-se ao limite, depois, trate bem as pessoas, faça seu comércio com respeito, com honestidade, mesmo que com inteligência, valorize o menor dos lucros na esperança que é só o início de um negócio muito maior. Mas é preciso haver as duas coisas: esforço pessoal e interação social, é importante que entendamos isso. Tantos há que se esforçam até, mas fechados em si mesmos, desprezam um mundo de homens comandados por homens para beneficiar homens, não deuses.
      Obviamente, tudo que o homem toca é passageiro. Isso pode ser mudado, mas dar perpetualidade às coisas é a última regra desse mundo. Infelizmente para a maioria, essa terceira regra é uma das regras do outro mundo, aquele que existe após a morte. A maioria não entende ou acredita nela, por isso tantos se frustram mesmo fazendo escolhas opostas, uns desejam apressar suas partidas daqui e outros procuram eternizar suas presenças aqui. Qualquer tentativa de eternizar algo implica em semear valores que vão além dos materiais, demanda priorizar saúde, não só física, mas emocional e espiritual. Por isso alguns chegam a obter tanto neste mundo, e depois acabam perdendo tudo, por desconsiderarem princípios morais, por desprezarem o bem e o mal, e repito, dê-se a esses princípios o conceito que se quiser, enquanto outros, frustrados, desistem, e colocam fé numa existência além morte física.
      Tirar Deus da equação, tentativa que fiz neste ensaio, pra ninguém dizer que não falei dele, bem, citei-o dessa vez. Mas ele talvez seja o mais injustiçado pelo homem neste mundo, em cujas regras nem ele interfere, regras que conferem méritos que nada valerão no outro mundo. Alguns creem em um Deus e aliam a ele poderes, poderes que ele tem? Acreditam que sim, mas nesse caso, não usa, porque os delegou a este planeta. Não, não faço aqui apologia ao profano, minha intenção não é desviar crentes, roubar deles o direito a adoração pelo simples fato de existirem neste mundo, pelo ar que respiram, como dizem romanticamente os mais puros. Só faço alguns questionamentos, cada um que os responda de acordo com aquilo que enxerga. O que vemos quando olhamos para frente, iluminação ou alucinação? O que nos impulsiona, uma visão realista ou mentiras que os homens nos contam somente para obter vantagens para eles mesmos neste mundo? Será que de alguma maneira não estamos, todos nós, cegos?      
      Cegos se desviam ou para a amargura, ou para a devassidão, ou para a insanidade. Os amargos, o ficam por verem fracassada uma fé que sempre esteve num equívoco, acabam acovardados como servos dos devassos ou dos insanos, por crerem no que os homens dizem sobre deuses, e não em Deus, tornam-se escravos de homens. Os devassos se perdem em si mesmos, sufocados pelos bens que deveriam agradá-los, e que acabam sendo seu maior mal, tornam deuses, o dinheiro e o prazer. Os insanos matam a razão privando-se do direito de questionar que os levaria a fazer a constatação da existência ou não dos frutos daquilo que plantam, assim seguem trabalhando em vão, cativos de si mesmos. Aqueles, todavia, que separam as coisas, o que é deste mundo e o que é do outro, adquirirão lucidez, chegarão à luz, aceitarão a responsabilidade pessoal e intransferível, e com trabalho, alianças e bons corações, terão um pouco de paz, ainda neste planeta.

quarta-feira, 23 de março de 2016

__"Words & Music" (Oscar Peterson & Count Basie)


      Dois gênios do piano jazzístico, não é preciso dizer nada sobre esse vídeo, só assistir e aprender com dois mestres.

terça-feira, 22 de março de 2016

_Feitiço do Tempo (Harold Ramis/1993)

      "Bill Murray interpreta Phil Connors, um egocêntrico homem do tempo da TV em Pittsburgh, que durante a abertura do anual Dia da Marmota (2 de fevereiro) em Punxsutawney, encontra-se repetindo o mesmo dia várias vezes. Depois de se deixar levar por todas as formas de perseguições hedonísticas, ele começa a reavaliar sua vida e prioridades. Em 2006, Groundhog Day foi incluído no National Film Registry dos Estados Unidos, sendo considerado "culturalmente, historicamente ou esteticamente significante"." Wikipedia

segunda-feira, 21 de março de 2016

o primeiro beijo

"Meu Primeiro Amor" (Howard Zieff/1991)
      Um dia olhei para uma menina e senti algo diferente, uma substância mexia com a química do meu corpo, nunca tinha sentido isso. Emocional, física? Não sabia o que era, mas via o rosto dela passeando pelo meu quarto, mesmo com a luz apagada e os olhos fechados, retardando meu sono. Ela voltava repetidamente à minha cabeça e me deixava estranho, eu não andava mais pela escola à vontade. Fazer o que sempre fazia, não parecia mais tão legal, tinha dificuldade para me concentrar nas aulas.
      O mundo não estava mais vazio, cheio de qualquer um, era eu e ela, mesmo que ela estivesse lá do outro lado do pátio, eu não via mais nada, não ouvia mais nada, sua presença crescia e tomava conta de tudo, como uma deusa, minha deusa. Na hora de comprar o lanche na cantina, no meio daqueles garotos sempre maiores que eu, daquelas meninas metidas que me esnobavam, de repente eu a via na minha frente. Tudo parava ao meu redor, uma sensação esquisita apertava minhas entranhas, o tempo se congelava, ela sorria e seguia. Eu ficava, hipnotizado, até que um idiota qualquer me mandasse sair da frente.
      Depois de noites de insônia, de ver minhas notas abaixarem, de tomar pito do pai por ter esquecido o troco do pão e do leite na padaria, tomei coragem. Fui até uma das amigas dela, uma daquelas feias que se acham especiais só por serem amigas da menina mais bonita da escola, e pedi para que levasse meu recado. Por que sonhei tão alto? Por que não me apaixonei por outra? Não precisava ser a mais feia, mas uma mais comum, mais próxima das minhas capacidades. Mas eu fui, proporcional à minha falta de noção era minha coragem. E as vi rindo, apontando os dedos pra mim enquanto eu me escondia atrás de um pilar. Então ela veio em minha direção, me senti o cara mais importante da escola, mais ainda, do mundo, eu era um príncipe aguardando a chegada da princesa, prometida a mim antes de eu nascer, predestinada a ser minha menina.
      - Oi - ela me disse, que voz linda. Duas coisas adoro nas mulheres, seus olhos e sua voz, nem ligo se não têm o padrão de beleza da maioria, olhos e voz revelam a alma, uma alma quente vale mais que outras medidas.
      - Oi...
      - Minha amiga disse que você queria falar comigo.
      - Quero...
      - Pode falar.
      - Bem... eu... bem... - a voz não saía, meu coração disparou, eu amputaria uma perna naquele momento sem anestesia e não sentiria nenhuma dor.
      - Sim... - ela tentava me ajudar, era linda, que pele, que cabelos, e o cheiro, nunca mais me esqueci do cheiro, até hoje lembro dele e sinto tontura, era doce, parecia mel, mas tinha um toque de álcool, como se fosse uísque de milho aromatizado.
      - Eu... eu... eu gosto de você.
      - Obrigada.
      - Não, eu não gosto...
      - Gosta ou não gosta? -  ela sorriu.
      - Quer dizer, não é gostar como de amiga, eu... eu estou apaixonado por você - só repeti o que vi nos filmes, achei que era aquilo que se deveria dizer naquela situação, que sabia eu sobre estar apaixonado, com treze anos de idade. Suas bochechas ficaram rosadas, eu ouvia a respiração dela, forte, tão perto de mim. Bem, o que eu queria, eu tinha feito, tinha dito, o resto não importava mais.
      Ela olhou para mim, por alguns instantes, então virou as costas e se foi, não para o grupo de amigas, mas para outra direção. As feiosas correram em direção a ela, curiosas, ela seguiu, de cabeça baixa e quieta.
       Aconteceu então algo que eu não entendi, depois que me declarei, a imagem da deusa se distanciou de mim, eu não me sentia mais refém do sentimento, parece que agora eu tinha controle, me senti forte, dono da situação. Na semana que se seguiu, eu cruzei com ela várias vezes pelos corredores e pelo pátio da escola, eu a olhei com segurança. Ela, contudo, parecia tímida, abaixava os olhos e apressava os passos, meio que fugindo de mim. Então, exatamente uma semana depois da minha declaração, estava eu saindo da escola, indo pra casa, quando ouvi uma voz chamando o meu nome, eu respondi:
      - Eu? - virei para trás e a vi, era meio-dia, mas a rua estava vazia, eu nunca a tinha visto naquela rua, pelo que eu sabia, ela morava do outro lado da escola.
      - Espera um pouco... - também nunca mais me esqueci daquele timbre de voz, era uma súplica, com um leve tom de ordem, mas com nobreza, e ao mesmo tempo emocionada. Se até hoje não consegui entender as mulheres, aquilo que aconteceu comigo, a iniciativa daquela garota, permanece um mistério pra mim até hoje. Ela correu até chegar perto de mim.
      - Oi... - eu tentei começar um diálogo, agia como o estúpido que todos nós homens somos, não era momento para falar.
      - Não, fica quieto - então ela me beijou, um beijo molhado, completo, às vezes ela parava, tomava fôlego, e continuava me beijando, puxando minhas costas em direção a ela. Quando ela parou eu continuei com os olhos fechados, eu nunca tinha beijado ninguém antes. Ela me disse:
      - Não fala pra ninguém sobre isso - ela virou as costas e foi embora.
      Eu estava literalmente nas nuvens, nem sei como cheguei em casa, olhei e estava no meu quarto, deitado na cama, com os olhos presos ao teto. Nunca mais falei com ela, estudamos juntos por mais um ano e meio, nos cruzamos de vez em quando pela escola, mas o sentimento desapareceu. Me apaixonei depois, e depois, e depois, às vezes mais de uma vez ao mesmo tempo, mas mesmo depois que eu entendi que a atração feminina sempre nos leva ao relacionamento sexual, que não é só uma sensação estranha e solitária, que não é adoração de homem para deusa, mas compartilhamento por igual entre dois seres de carne e osso, nunca mais senti o que senti por aquela menina, que me deu o primeiro beijo de mulher.

domingo, 20 de março de 2016

__"Luíza" (Tom Jobim)

      Toda a obra de Antonio Carlos Jobim é maravilhosa, ele é completo, música e letra, harmonia e melodia, no violão, na flauta, no piano, nas vozes. Essa valsa, contudo, é especial, não bastasse a linda letra, só como peça para piano fala por si só, é parte principal do repertório de qualquer pianista da noite, funciona sempre.

sábado, 19 de março de 2016

_Advogado do diabo (Taylor Hackford/1997)

      Com Al Pacino, fazendo em minha opinião o melhor diabo do cinema, Keanu Reeves e Charlize Theron, um filme revelador, ao meu ver, mostra o que pensa o chifrudo (que não é chifrudo), que negocia e argumenta com algo que pode impedir seus intentos, o livre arbítrio do homem.

sexta-feira, 18 de março de 2016

vozes

      Não foi assim, de um dia pro outro, não acordei em uma manhã e percebi que o mundo não existia mais, foi aos poucos.
      Às primeiras dores, não dei muita importância, não ficavam em mim, ainda estava à sombra da infância quando somos protegidos por uma potência maior. Contudo, aumentando as decepções intrínsecas à vida, enfraqueceram-se cada vez mais minhas tênues proteções. De nada adianta racionalizar quando a ferramenta de racionalização nasceu quebrada, ao contrário, a incapacidade de praticar o que parece mais lógico, só debilita ainda mais a mente, então, a loucura naturalmente torna-se mais interessante. Talvez o cuidado médico ainda na adolescência pudesse fortalecer minhas resistências, talvez o entendimento de família pudesse amenizar minha carga, talvez a consciência de minha vulnerabilidade pudesse me consolar, tirando-me da condição de culpa extrema, me entregando alguma explicação do porquê das coisas, talvez, mas nada disso aconteceu.
      Segui sozinho, machucado e machucando pra depois pagar o preço caro do uniforme do remorso que sempre leva no peito a medalha da vergonha, as vestes daquele que carrega consigo uma mente dividida. Sem filtros, amplificam-se os extremos, até rasgar o diafragma e tudo soar como o estrondo de um tiro de canhão. Então, as noites de sono profundo já não existiam mais, após tentar por uma hora ou duas desligar e dormir, eu me levantava. Voltava pra cama depois de umas três horas assistindo TV e compondo músicas que ninguém nunca ouviria, para conseguir umas quatro horas de sono leve que nunca saciava. Acordava pesado, só olhar o dia, doía, era difícil enfrentar o mundo, a cidade revivia e eu morria. Nas noites que saía pra trabalhar era mais fácil, mas um pianista não consegue tocar sete noites na semana, se fosse assim, o ofício seria o céu na terra. O inferno é pisar a realidade dos outros, já que tocando crio a minha própria realidade. As melodias me dão asas, mesmo as lembranças doloridas que algumas canções pinçam do fundo do poço de nossas memórias, são prazerosas com os dez dedos sobre as teclas de uma bom piano no diapasão.
      Mas eu precisava enfrentar os dias pra completar o orçamento, dar aulas para uma maioria de alunos que não tinha nenhum talento, apenas achava bonito tocar o instrumento, ou pior, forçada pela mãe que achava chique o piano. Se eu fosse mais galinha tinha comido muita trintona frustrada com o marido que passava o dia no escritório e as noites nos bares, enquanto ela sonhava com aquele jovem pianista, de mãos brancas e dedos afilados, pelo qual tinha se apaixonado anos atrás. Sempre tive esse problema, super ego grande demais, não me aproveito das fragilidades alheias, aliás, as frágeis nunca me atraíram, prefiro as falsas frágeis, que fingem ser fáceis e dóceis, mas são misteriosas e sabem dizer não de um jeito especial. Talvez seja esse o motivo de eu nunca ter conseguido ficar com alguém por muito tempo. Hoje em dia, mulheres inteligentes não dependem de homens, elas dão as cartas, se bem que algumas que conheci e que admirei por tanto tempo, que achei mesmo que eram muito pra mim, no final acabaram com um mané qualquer, burro e vagabundo, cheio de charme e de conversa fiada.
      O mundo foi me cansando, então, minha cabeça começou a fugir, já não ouvia as pessoas, tudo parecia estar longe, reverberando até o infinito. Quando entro num restaurante, procuro uma mesa num canto, e me sento na cadeira que fica de frente para a parede, não de costas para o ambiente, isso não, assim alguém poder vir e me matar sem que eu saiba. Prefiro aquela que me dá a opção, se eu olho para frente, tenho o descanso da parede, mas se eu quiser, posso olhar para o lado e espreitar as pessoas. Não gosto de gente reunida e conversando, elas sempre falam de mim, mas gosto de observar as pessoas, contudo, faço isso de longe, se alguém senta numa mesa encostada a que estou, me levanto, vou para outra e peço para o garçom transferir os pratos, eles já estão até acostumados com isso. Hoje em dia isso nem me importa mais, já que não ouço e nem vejo nada, tudo fica embaçado, lá no final do túnel onde está o mundo. Minha única dificuldade é vir para a frente quando tenho que fazer o pedido ou preciso pagar a conta. Por isso prefiro self-service, faço meu prato, recebo o papelzinho com o valor e depois passo o papelzinho mais o cartão de crédito para o caixa, só tenho que responder se é crédito ou débito, sem qualquer interação com a humanidade.
      Dos quarenta, quando tive minha terceira e pior crise, passaram-se quinze anos, o que vou relatar agora aconteceu há cinco anos. Domingo é um dia ruim, quando não toco. Os bares fecham cedo e naquele domingo de abril eu não queria voltar para casa, a praça era uma boa opção, mendigos, tarados e crentes não estavam por lá. Fazia frio, um vento seco vinha em sentido contrário, ninguém queria estar exposto, mas quando todos se protegem é quando é mais conveniente para mim me expor. Na última crise, as vozes foram cruéis, queriam me matar, mas não deixavam que eu morresse. A morte liberta, demônios não querem conceder liberdade, querem nos manter acorrentados. Foi difícil calar as vozes, não conseguia trabalhar, foi quando parei de vez de dirigir, depois daquilo passei a andar a pé ou de ônibus, eu não conseguia mais me concentrar, mesmo manter o carro em linha reta. Quando melhorei, dirigir fazia minha ansiedade ir às alturas, aparecia em mim um monstro muito feio. Monstros de verdade canibalizam-se e não sentem culpa, os falsos monstros, porém, batem com uma mão e acariciam com a outra, numa relação sado-masoquista. Naquele domingo, as vozes, sob as rédeas dos sais de lítio já eram minhas amigas. O demônio pode ficar bom? Não, mas pode ser mentirosamente convincente, pelo menos por um tempo, até alcançar seu intento. Bem, já convivo com as boas vozes há mais de dez anos, até agora não me fizeram mal, além de me manterem longe da realidade. Do que eu fujo? De nada, não tenho nada pra fugir, não tenho família, mulher, filhos, talvez fuja de meus pais e de meu irmão, meus eternos algozes, mas já faz tanto tempo que não os vejo, agora nem fazem mais diferença.
"Mente Brilhante" (Ron Howard/2001)
      - Você não se apaixonou mais...
      - Acho que nunca me apaixonei - respondi à mulher sentada ao meu lado no banco da praça, algumas pessoas passava por mim rapidamente, se apressavam para a missa.
      - Não depende da gente, acontece...
      - Qual foi a última vez que você se apaixonou?
      - Acabei de me apaixonar...
      - Por quem?
      - O que você acha? - ela me olhou com aqueles pequenos olhos verdes. Por trás das marcas de expressão, dos cabelos brancos com tingimento já vencido e dos dentes amarelos de nicotina, havia um coração de moça.
      - Dói demais... - reclamei eu.
      - Qual o problema com a dor? Enquanto há dor, há vida...
      - Estou morto há muito tempo, se é que vivi algum dia... -  ela colocou a mão direita atrás da minha cabeça e começou a fazer cafuné em meus cabelos, de um jeito muito terno, como há muito ninguém fazia. Então, com firmeza, mas com carinho, puxou-me para ela, me beijou, lentamente, com os olhos fechados, o gosto de anis com tabaco penetrou meu cérebro, depois se afastou, sorriu e se levantou.
      - Por quê? - perguntei amargo.
      - Por que não?
      - Não mereço...
      - Bobo...
      - Quando eu tinha quatorze anos, uma moça de dezessete me disse isso, ela sempre me olhava com olhos quentes, me comia com eles, se encostava em mim por qualquer coisa. Às vezes, enquanto eu tocava uma peça de piano, ela ficava atrás de mim, eu sentia os seios dela na minha nuca, fervendo. Engraçado como as lembranças hoje me revelam algo que na época eu não percebia, ela estava apaixonada por mim, e eu nem dava bola...
      - Bobo... - ria a mulher.
      - Tolo, minha alma sempre esteve no tempo errado, dessincronizada do corpo. No passado, quando era menino, minha alma voava para o futuro, querendo descanso. Hoje, quando meu corpo precisa dormir, minha alma voa para o passado, desejando festa. Como se o passado fosse bom, passado só parece bom no futuro. De um jeito ou de outro a gente nunca está presente no presente por inteiros, agradecidos pelo aqui e agora, somos seres eternamente ausentes de nós mesmos.
      - Vou andar um pouco, a tarde está linda - disse ela arrumando a bolsa no ombro.
      Onde ela via beleza naquela tarde? Eu via, mas acho que mais ninguém via, as mulheres sempre dizem que preferem o verão, pra ficarem bronzeadas, usarem roupas curtas e se exibirem por aí.
      - Me apaixonei uma vez - disse o velho sentado ao meu lado.
      - Foi bom? - respondi, olhando para a frente, fixando os olhos na água que subia do chafariz da praça, era o único som que eu ouvia naquele momento, a missa tinha começado, todos estavam dentro do templo.
      - Foi, até que minha mulher descobriu... - ele sorriu com uma malícia doce e tranquila nos lábios. Poucas vezes a gente sabe a importância do momento que está vivendo, na maioria das vezes, só depois é que nos damos conta que vivemos um momento único, que provamos o sexo de uma maneira que nunca mais proveremos, que experimentamos uma felicidade exclusiva, que nada mais nos dará igual. Pena que nesses momentos, dificilmente a gente paga os preços, desfaz alianças débeis e enganosas para iniciar uma que pode ser a mais profunda e duradoura de nossas vidas.
      - Devia ter tomado mais cuidado...
      - Mas no final das contas convenci a esposa que não era nada, ela acreditou, ou pelo menos foi isso que me disse, acho que não queria me perder. Foi só uma vez que pulei a cerca, e não foi culpa minha, não procurava por encrenca, a coisa simplesmente aconteceu e me prendeu de um jeito que eu não imaginava. A dona era casada, não queria deixar o marido, e hoje, olhando a coisa de longe, acho que ela tinha casos frequentes, eu não era nada especial pra ela, era apenas o caso mais novo. Talvez o destino tenha sido bondoso comigo, eu caí fora antes dela me dar um pé na bunda, o que me deixaria muito mais frustrado. E quer saber de uma coisa?
      - O quê?
      - Um ano depois minha esposa faleceu, câncer na cabeça, foi tudo muito rápido. Eu enviuvei e nunca mais me casei, namorei bastante, aproveitei a vida, mas nunca mais me apaixonei, não como daquela vez. Talvez, seu eu tivesse insistido, talvez ela tivesse se separado e ficado comigo, talvez...
      - Talvez, talvez, o presente é inexorável, mas o futuro está sempre mudando, a cada nova escolha que fazemos. O passado também muda, em nossa cabeça, reavaliamos as coisas e descobrimos que algo era mais importante do que achávamos, ou menos relevante que pensávamos ser.
      - Tudo dá em nada, só aumenta é o vazio do nosso coração, à medida que as mentiras vão sendo reveladas, as escolhas diminuem, o caminho fica mais estreito - concluiu o velho resignado.
      - Oportunidades, a vida nos dá algumas, não muitas, nos custarão bastante, mas se não forem aproveitadas, nos arrependeremos pelo resto de nossa existência.
      Para quem eu dizia aquelas palavras? Eu nunca tinha tido nenhuma oportunidade, as coisas simplesmente não aconteceram pra mim, o que eu sabia da vida era dos filmes que via e dos romances que lia. Eu era e sempre fui o cara das fantasias, das ilusões, das mentiras, e essas, não diminuem, aumentam cada vez mais em minha cabeça.
      - Moço, tem fogo? - sempre tenho fogo, não fumo, mas acho bacana os caras dos filmes abrindo e fechando o Zippo. Comprei um, certa vez, prateado, sem nenhuma decoração, e o levo comigo. Ela tinha na boca um cigarro de cravo, sentou-se ao meu lado e eu acendi seu vício.
      - Não está com frio? - ela vestia calça jeans grudada no corpo, All Star preto gasto e sujo, camiseta preta e uma jaqueta surrada também preta, tinha altura mediana, magra com o corte de cabelo da moda dos meninos, curto e com aquele topete moicano. Morena de tanto andar ao sol, olhos negros e grandes, ressaltados com lápis, não usava batom. No pescoço dava pra ver parte de uma tatuagem que parecia tomar todo seu peito, a cabeça e o rabo de um escorpião.
      - É um escorpião... - ela riu, delatando minha curiosidade.
      - Seu signo?
      - Não, de uma garota.
      - Deve ser importante pra você.
      - É, pena que não sou pra ela...
      - Certeza?
      - É...
      - As coisas mudam - lá estava eu usando frases feitas de filmes novamente...
      - As coisas não mudam, as pessoas não mudam, nascem de um jeito e morrem assim...
      - O meio nos muda, as experiências...
      - Só aparentemente, na verdade só reforçam o que sempre fomos, acontece que tem gente que não sabe o que é, então, quando descobre, acha que mudou, na verdade não era nada, então se tornou alguma coisa, o que sempre foi - ela falava bem, era alguém com estudo.
      - Você fala bonito.
      - Filosofia ensina a falar bonito...
      - Você fez filosofia?
      - Fiz.
      - É professora?
      - Do estado, gosto, é legal estar com a moçada...
      - Eu não tenho muito paciência com eles...
      - Eles fazem tipo, todo mundo quer parecer durão, mas são carentes até, eu era assim...
      - Eu era um jovem até que seguro, liderava a classe, tinha as melhores notas, fui ficando tímido e carente com o tempo, minha vida parece toda ao avesso...
      - Na vida só mudam os modelos de celulares...
      - Acho que sou a única pessoa no mundo que não tem celular, ainda mantenho uma secretária eletrônica...
      - Cara, você está velho...
      - Sempre chego em casa com a esperança que uma mensagem mudará a minha vida, um convite pra tocar num navio, não só pra uma temporada, mas pra sempre, aí eu viajaria pelo mundo, se desse fixaria residência em Paris e tocaria bossa-nova em algum café.
      - Você é músico?
      - Tento ser...
      Escureceu, noite de domingo em cidade pequena é sinistra, a missa tinha acabado, todos tinham ido pra casa, eu queria ir embora. Naquela noite elas foram generosas comigo, à medida que o tempo passa ficaram mais sofisticadas, é claro que se eu me der ao trabalho acharei nas memórias traços de cada uma delas. A mulher parecia minha primeira professora de piano misturada com aquela moça de dezessete que gostava de mim. O homem me lembrava meu pai em uma vida secreta que ele tinha, minha mãe ainda está viva, mas acho que não pra ele. A jovem era uma lembrança mais recente, de uma cantora que dividia a noite comigo em um bar, se bem que a cantora era baixinha e gordinha.
      Mas não é tão simples assim, elas nunca são uma, são várias, costuradas de pedaços de almas que cruzaram o meu caminho ou que eu gostaria que cruzassem. Quem vai entender o que nossa mente faz com tudo o que experimentamos ou com tudo o que experimentaram outros antes de nós e nos passaram pela consciência coletiva? Que deem os nomes que preferirem, lembranças, vidas passadas, vozes, espiritual ou psicológico, a verdade é que somos marionetes nas mãos desse mecanismo desconhecido, incontrolável e maravilhoso que mora dentro de nossas cabeças.
      Por que me lembro dessas três vozes em especial? Porque foram precisas demais e deixaram em mim um sentimento diferente, foram mais que um sonho, pareceram uma revelação, e quanto mais eu penso nelas, mas claras ficam. Naquela noite eu voltei para casa e escrevi aqueles três encontros, foi o meu primeiro conto. Depois vieram outros, até que comecei a escrever romances, bem, eu achei uma utilidade para as vozes que falam comigo, fiz delas estórias, descobri algo tão prazeroso quanto a música. Hoje escrevo matérias para páginas da net, revista e jornal, me sinto produtivo, achei sentido naquilo que sou, não sou só um maluco inútil, mas um escritor, tudo começou com aquelas três vozes apaixonadas.

quinta-feira, 17 de março de 2016

__"Adios Nonino" (Astor Piazzolla)

      Gênio, gênio, gênio, está para a Argentina como Tom Jobim para o Brasil ou George Gershwin para os EUA, todavia, compõe uma música tocante, como só os latinos sabem fazer, dramática como só los hermanos são, essa peça me emociona demais.

quarta-feira, 16 de março de 2016

_Franco atirador (Michael Cimino/1978)

      "Explora as consequências morais e mentais da violência da guerra e o patriotismo manipulado politicamente através da honra, amizade e família, numa pequena e unida comunidade do interior. O filme lida com assuntos controversos como abuso de drogas, infidelidade e doenças mentais... ganhou cinco prêmios Oscar, incluindo melhor filme e melhor diretor" Wikipedia, com Robert de Niro, John Cazale, John Savage, Meryl Streep e Christopher Walken, no vídeo cena da roleta russa.

terça-feira, 15 de março de 2016

No silêncio, a certeza

      Convicção que se apregoa aos berros, em palanques, não é certeza, mas tentativa de calar a dúvida. Dúvida de quem ouve? Não, dúvida de quem fala. Muitos políticos, advogados e vendedores podem ser bem sucedidos em suas causas ganhando as coisas no grito, conseguem vender mentiras como verdades e convencer muitos a adquirirem seus produtos. Mas seria esse o meio mais adequado para se compartilhar sabedoria sobre questões essenciais do ser e do existir do homem? É assim, aos gritos, que se porta um sábio, um mestre?
      O homem realmente convicto caminhará em silêncio em meio às pessoas, tendo como único argumento da certeza, a prática de vida simples, limpa e coerente. Como se reconhece o sábio, um sábio genuíno? É alguém que conseguiu ver por trás das coisas, por dentro das pessoas, no fundo de si mesmo, além de vaidades e necessidades básicas da vivência. Nunca será somente pelo seu discurso, pela sua habilidade de convencer as pessoas com palavras.
      Identifica-se o sábio pelo seu pisar diário na terra, um mover comum, popular, sem pompas, mas sinceramente respeitoso, liberto de conceitos pré-concebidos, numa atitude que maliciosos e manipuladores podem chamar de arrogante, visto que não entendem. O sábio não pode ser entendido, não pelos tolos, suas ações são despretensiosas demais, leves, mesmo que movam montanhas, desprovidas de planos de conquista, qualquer que seja a conquista, já que toda conquista, mesmo que pareça ser com amor e para amar, é egoísta. O sábio não se apodera de nada, mas deixa seguir livre, se existir algum ponto de convergência, será por escolha pessoal e independente numa coincidência que o universo saberá, aí sim, que é a maior e mais verídica prova de amor.
      O sábio está aberto, por isso não encaixota nada, não acumula, mas transforma e transfere, ouve tudo e todos e desses sempre colhe algo de bom, mesmo que sua conclusão final seja solitária, isenta de política. O que permite andar livre e deixar ser livre é a convicção baseada em si mesmo, não de maneira prepotente, mas na coragem de confiar no próprio coração, que posterga qualquer espécie de fome de aplauso ou de consentimento.
      Essa disposição é a única que pode gerar paz, não qualquer paz, mas aquela que vai além do ter e do exibir, que não carece de referências humanas, nem faz uso de comparação. Uma convicção assim não se adquire na velhice da juventude que ainda deseja provar que nada têm a provar, nem na juventude da velhice que acha ser experiente o suficiente para escolher o prazer e desfrutá-lo sem culpa. Ela é aprendida com nãos e dores, com perdas e injustiças, com isolamentos e privações.
      Contudo, a melhor sabedoria é aquela que depois de experimentar todas as coisas, não retém mágoas, não promete rancores e nem planeja vinganças. O sábio constrói dentro de si um filtro, um aparelho raro e caro, fabricado a partir dos elementos mais preciosos do espírito, com esse recurso ele lança fora o lixo, dos outros e os próprios, para não carregar consigo inutilidades, tumores ou transtornos. O sábio adquire sanidade em todas as esferas, física, emocional e espiritual.
      Os falsos sábios são aqueles que só percorreram metade do caminho, sofreram bastante, e até aprenderam a guardar para si seus desgostos, contudo, não conseguiram se livrar da mágoa, do rancor e da vingança. Eles buscarão dar o troco, mesmo que suas intenções estejam maquiadas de medalhas de hora ao mérito e embasadas em direitos legais, assim se colocarão numa posição paternalista que compra a admiração das pessoas, para ganhar delas ovação, submissão e adoração.
      O sábio genuíno curou-se, antes de compartilhar cura, assim aprendeu que a única coisa que pode limitar as pessoas é o tempo, o tempo que cada um demora para achar a própria cura, o sábio tem paciência com os outros, tanto quanto tem consigo. O sábio é mestre naturalmente, não trafica almas, mesmo que muitos o sigam sem ganhar nada em troca, o sábio reconhece o sábio e sabe que esse não podem ser subornado.
      O verdadeiro sábio, antes de olhar para o sol, prestou atenção à terra, andou por ela com calma. Depois, ergueu sua cabeça, aos poucos, abriu os olhos devagar, não de todo, e muitas vezes, mesmo com a cabeça levantada, em direção ao astro maior, manteve os olhos cerrados e apenas sentiu o calor, em sua pele, em sua alma. Os loucos? Bem, esses olham para o sol de qualquer jeito, assim acabam ferindo as retinas espirituais e com a cabeça cheia de alucinações, com a mente doente pela falta de zelo, passam a analisar distorções, não a verdade, dessas, esses criam deuses de pedra e de ideias.
      A intenção irresponsável e inocente não legitima o direito, é preciso respeito com o tempo, e muitas vezes uma observação indireta, analisando apenas as consequências e não diretamente o objeto. Obviamente que mesmo sendo o objeto único, suas emanações são variadas e distintas, o humilde entenderá isso, o insano o chamará de incrédulo, mas o simples passará uma vida aprendendo, enquanto o louco, subirá rapidamente na montanha mais alta e depois se lançará lá de cima, insatisfeito e sem respostas.
      O mundo encheu-se de falsos sábios que precisam gritar verdades para convencer a si mesmos, mas enganosamente convencidos que precisam convencer os outros, cegos guiando cegos, não têm nem para si e querem dar aos outros. O que se vê então é uma manada de malucos olhando para o sol, sem cuidado, tornando-se cada vez mais enfermos, e mesmo que jurem conhecer a luz mais forte e clara, estão nas trevas deixando suas almas cada vez mais obesas de alienação e mentira. Doentes que trocam doenças por outras doenças, viciados que mudam os vícios de nomes, mas que continuam dependentes de dúvidas. Escravos que mudam a cor das gaiolas, mas que não conseguem viver livres de fato, que o tempo todo buscam para si algozes com fala mansa e com sorriso farto, para seguirem hipnotizados pelas mentiras gritadas nos púlpitos.
      É preciso coragem para caminhar sozinho, é preciso coragem para questionar o que muitos dizem ser inquestionável, é preciso coragem para entender que o que tantos dizem ser divino, é apenas uma visão humana, míope e parcial. Não existe verdade absoluta na boca dos homens, em nenhum deles. O primeiro homem que ouviu a verdade já a tornou mentira quando a contou pela primeira vez a outro homem, se é que ele realmente ouviu a verdade, ou não mentiu também sobre isso. Mas será que a verdade foi revelada a algum homem? Será que o homem pode resistir diante da verdade? Será que o homem merece a verdade? Então, que pretensão é essa nossa quando dizemos que temos na mão um dogma e que podemos presentear outro homem com ele? Que arrogância a que temos quando dizemos que cremos em algo puro?
      Portanto, calem-se as tribunas, aquietem-se os corações, a convicção não é elefante, é beija-flor, e mesmo elefante pode se tornar arisco. Então, se algum de nós ousar dizer que achou a paz em alguma certeza, que a guardemos no silêncio do nosso espírito, se mais alguém com a alma assim, tranquila, passar por nós e reconhecer em nós a paz, que bom, conseguimos fazer bem a mais alguém. O resto são gritos de mentira na boca de quem não tem certeza de nada, são falsos mestres tentando fazer discípulos equivocados para aumentar o coro dos mentirosos e abafar o berro das almas clamando por respostas.
      Guarde para si, sua convicção mais preciosa, aquiete seu coração e deixe que sua certeza dê frutos. Se isso acontecer, você não precisará gritar pra ninguém as suas verdades, primeiro porque elas não serão suas, depois porque elas te conduzirão a algo muito maior que você, que abraçará as outras pessoas da mesma maneira que abraçou você, com cuidado, com calma, em paz.

segunda-feira, 14 de março de 2016

__"Light Years" (Chick Corea and the Elektric Band)

      O melhor do fusion anos 80, só feras nessa banda, depois da primeira onda dos tecladistas de rock progressivo, a segunda onda, dos tecladistas de jazz fusion, trouxe muito tecladista rockeiro para mais perto do jazz e para uma música ainda mais técnica.

domingo, 13 de março de 2016

_Tootsie (Sydney Pollack/1982)

      Com Dustin Hoffman e Jessica Lange, recebeu dez indicações ao Oscar, venceu na categoria de melhor atriz coadjuvante, em 2000 foi considerado pelo American Film Institute como o 2° filme mais engraçado da história. No vídeo, a música tema, "It Might Be You" cantada por Stephen Bishop, escrita por um campeão de trilhas para cinema, Dave Grusin (um dos músicos mais completos do século XX), é uma das canções mais belas dos anos 1980.

sábado, 12 de março de 2016

amor duradouro

      ao te conhecer, renasci,
      tornas-te mãe, eu, homem me fiz,
      o encanto, porém, esse nunca perdi,
      sigo te amando, como te quero, te quis,
   
            o mistério, é que me cativa,
            o que se conhece e se toma, se perde,
            o que se esconde, isso sim, atina
            em mim, um querer que não perece,

                  mas como reter nestas mãos
                  o mar, a terra, o vento?
                  é de carne o meu coração,
                  preso a ti só por um sentimento,

                        amar, eu nunca aprendi,
                        não me ensinaram, pouco me deram,
                        contigo, contudo, me vi,
                        melhor, quieto, sincero,

                              a luz que me chama, são teus olhos,
                              o calor que me conforta, é teu colo,
                              o lar que me acolhe, são teus braços,
                              me faço e refaço ao teu lado,

                                   para ver você mais feliz,
                                   pra viver com você sem segredos,
                                   para andar com você por aí
                                   sem mágoa, sem culpa, sem medo,

                                         se dizem que nada é perene,
                                         se falam que tudo se acaba,
                                         que tolos, pequenos, não veem,
                                         covardes, perderam a graça,

                                               que vale cercar-se de bens,
                                               cobrir-se de prata e de ouro?
                                               mais vale ganhar de alguém
                                               seu mais exclusivo tesouro,
                                               amor duradouro

sexta-feira, 11 de março de 2016

__"Stop this train" (John Mayer)

      Ele consegue agradar a todos, rockeiros e baladeiros, blueseiros e jazzistas, homens e mulheres, um dos grandes talentos da atualidade, o novo Eric Clapton? Ele só tem 38 anos, ainda tem muito a mostrar... (faixa do DVD "Where the light is", integralmente recomendado).

quinta-feira, 10 de março de 2016

_A Garota do Adeus (Herbert Ross/1977)

      Estrelado por Richard Dreyfuss (Oscar de melhor ator), Marsha Mason, Quinn Cummings e Paul Benedict, roteiro original de Neil Simon (esse roteirista e o diretor Herbert Ross, recomendo para serem visitados em outros trabalhos, são excelentes).

quarta-feira, 9 de março de 2016

Questão de escolha

      Chovia forte, chovia há dias, parece que não pararia de cair água do céu nunca mais. Ele gostava de andar a pé pela cidade, principalmente à noite. Era quarta-feira, seu restaurante favorito fazia o melhor filé à parmegiana numa cidade onde esse prato era tradicional, todos os restaurantes famosos o faziam, e todos diziam que faziam o melhor. Ele tinha tomado uma taça de vinho tinto da casa, jantado e terminara a refeição com um pedaço de torta de limão e um café expresso, curto, forte e quente, agora estava na rua, voltando para casa. Morava no centro, perto do restaurante, nem havia trazido guarda-chuva, mas uma tempestade surrava a terra, chuva e vento, ele caminhou por algumas quadras e teve que parar, se continuasse ficaria ensopado.
      Encostado na porta roliça de um açougue fechado, deixava-se hipnotizar pela água que descia no asfalto, com certeza já estava inundada a região mais abaixo da cidade. Barulho de chuva foi feito pra gente dormir ouvindo, ele estava cansado, já trabalhava há dez dias seguidos na produção de um álbum de um cantor sertanejo qualquer. Ele pensava em quanto tempo estava perdendo com seu talento, podia estar na capital, tocando jazz em algum bar bacana, mas estava lá, no interior, esquecido na caipirolândia fazendo música para caipiras. Bem, se isso era o que pagava sua independência, fazer o quê, o pior é que aquela música ruim, aquelas harmonias óbvias e pobres, aquelas letras cheias de malícia e duplo sentido, grudavam em sua cabeça. Ele teria que ouvir muito jazz organ para esquecer aquilo, horas de Jimmy Smith seriam necessárias para que o sertanejo universitário saísse de seu cérebro.
      Ele tentou relaxar, pensar numa escala de blues, no motor da leslie roncando enquanto triturava o som maravilhoso do tonewheel. Quando ele estava conseguindo quase se concentrar no tema de "The cat", seus ouvidos chamaram-lhe a atenção para o ruído de um batuque, estava atrás da chuva e vinha de uma casa à sua direita, alguns metros abaixo da rua. Ele trabalhava como profissional de música desde a adolescência, começou o piano erudito ainda criança, já havia tocado de tudo, todos os ritmos, estilos, de todos os tempos e nacionalidades, mas aquele batuque primitivo, sem harmonia, acompanhando palavras de ordem em nagô, não lhe fazia bem, apertava seu peito, lembrava-lhe a pior parte da pior parte de sua infância.
      André tinha muitos amigos que frequentavam terreiros, muitos dos percussionistas com os quais trabalhava tinham começado a tocar seus instrumentos nas religiões de origem africana. Ele não era um cara preconceituoso, de forma alguma, mas aquela música em especial causava-lhe uma sensação estranha, de morte, como se estivesse caindo num abismo, num sonho, querendo acordar, mas não conseguindo, assim continuava caindo e caindo, num buraco negro sem fim. Contudo, naquela noite, ele sentiu um desejo esquisito, queria se aproximar do som, do lugar de onde vinha o batuque, parece que alguma coisa o chamava.
      A chuva diminuiu, para ele continuar seu caminho só precisava seguir reto, atravessar a rua, mas ele desceu, seguindo a água da chuva, em direção ao som dos atabaques. Era uma residência toda pintada de verde, ele então atravessou a rua e se escondeu, do outro lado, bem em frente, atrás de uma árvore. O poste com a lâmpada queimada ofereceu-lhe o esconderijo que precisava, encostou-se no muro da casa, que parecia abandonada. Olhou a casa verde, estava toda fechada, janelas e porta, o batuque não parava, parecia entorpecê-lo, mais que a chuva que agora pingava de leve. Ele notou que as casas dos lados da casa verde, ambas, também estavam abandonadas. Parecia que alguém o havia amarrado naquele lugar, seus pés pesavam, fazia frio, ele levantou o colarinho do casaco e ficou de campana.
      Não demorou muito para que a porta se abrisse e as pessoas começassem a sair, eram casais, na maioria, mas também havia mulheres, sozinhas ou com outras mulheres, ninguém se falava, andavam depressa, até que pareceu que todos haviam saído. A rua ficou vazia, muito vazia, o mundo pareceu vazio, ele se sentiu muito só, como nunca antes havia se sentido, então, uma mulher apareceu na porta. Não, não era negra, baixa e gorda vestida de branco, não tinha nenhum estereótipo de mãe de santo baiana, era uma senhora, magra, estatura mediana, muito branca, de cabelos arrumados e finamente vestida. Ela ficou lá, parada na porta, e por alguns instantes olhou para frente, na direção dele, mas para o alto, para o céu, então, ela acendeu um cigarro e começou a fumar, com muita calma.
      Ele não conseguia se mover, atrás da árvore, pensava, "ela não deve ter me visto, vou ficar aqui quieto, quando ela entrar, vou embora", André não conseguia nem respirar. Ela tragava o cigarro lentamente, soltava a fumaça e tornava a tragar, fez isso algumas vezes, então, jogou o cigarro ao chão, pisou nele e começou a andar. Passo a passo ela atravessou a rua e veio na direção de André, ele pensou, "ela está vindo pra cá, o que é que eu faço?". Mas ele não podia se mover, parecia parte da calçada, cimentado no chão. Ela chegou até ele e parou, de alguma maneira o luar, entre as nuvens pesadas da tempestade que voltaria a qualquer momento, achou uma brecha e iluminou rosto da mulher, então ele pode vê-la com mais nitidez. Ela cheirava perfume caro, tinha os olhos azuis, esses fitaram os olhos de André, e antes que ela abrisse a boca para dizer algo, ele sentiu como que se já soubesse o que ela iria falar.
      - Está com medo? - disse ela.
      - Não - gaguejou ele.
      - Não precisa mentir, estou sentindo seu medo desde que vim pra fora. Como você se chama?
      - André, e a senhora?
      - A senhora? - ela não respondeu, mas abriu o rosto num sorriso distante.
      - Já está tarde, preciso ir - tentou se livrar André.
      - Você esperou até agora, agora quer fugir?
      - Esperei?
      - Você quer respostas?
      - Tem perguntas que nunca terão respostas.
      - Me faça uma.
      - O que é que eu faço nesta cidade?
      - O que você veio procurar aqui?
      - Vim atrás de uma mulher, não deu certo, já estava trabalhando aqui e acabei ficando.
      - Você a quer de volta?
      - Não sei, acho que não mais.
      - As pessoas podem ser convencidas.
      - Como assim?
      - Ela pode ser convencida a voltar pra você.
      - Convencida por quem? Pela senhora?
      - Por mim? - debochou ela dele.
      - Desculpe-me, mas a senhora ainda não me disse seu nome.
      - Tenho vários nomes - ele pensou, "ela deve ser de família tradicional, com um monte de sobrenomes", mas não foi isso que ela quis dizer.
      - A senhora é nascida aqui na cidade?
      - Estou nesta terra há muito tempo - ela parecia, pelos cabelos, ter mais de sessenta, mas sua pele, alva como a lua, parecia pele de bebê.
      - Entendo - na verdade ele não estava entendendo muita coisa, mas achava que entendia pelo menos um pouco.
      - Quer a amada de volta ou não?
      - Às vezes penso nela...
      - Você pensa sempre nela, André - ela falava como se o conhecesse a fundo e há muito tempo.
      - Ok, admito, penso bastante nela, mas talvez seja porque ainda não achei alguém para colocar no lugar dela, agora é tarde, está noiva, vai se casar.
      - Ela pode ser convencida.
      - Já vem a senhora com essa conversa de novo.
      - Está duvidando de mim, meu jovem?
      - Não - é claro que estava, mas ficou apavorado, teve medo de contradizê-la.
      - Podemos fazer um negócio, é simples, você me dá algo e eu dou a você algo em troca.
      - Estou numa dureza só - "lá vem mais uma pessoa querendo meu dinheiro", pensou ele, já basta o sindicato de músicos que pedem muito e não dão nada em troca.
      - Não preciso do seu dinheiro.
      - O que você quer?
      - Que você se lembre de mim, que agradeça a mim por tudo que você tem, que invoque meu nome e peça para que eu esteja sempre com você.
      - Isso parece papo de crente, você está falando em nome de quem? De Deus?
      - Deus? - ela deu uma enorme gargalhada, pareceu que o mundo inteiro ouviu. André ouviu o eco repercutir na noite, mas continuava olhando para ela, não podia deixar de fazer isso, nem piscava.
      - Não é? Em nome de quem então, aliás, qual é o nome da senhora?
      - Meu nome? Você ainda não sabe quem eu sou?
      - Não.
      Naquele momento, ele percebeu, estava ouvindo ela falar, desde o início, mas na verdade ela não tinha aberto a boca, ele ouvia tudo em sua cabeça. Os olhos dela brilhavam muito, eles o prendiam, então, ele fez um esforço, talvez o maior esforço que já tinha feito até então, como aquele que se faz quando se quer acordar de um pesadelo, mas se sente preso à cama. Ele reuniu todas as forças que tinha, em sua mente, em seu coração, ele queria sair dali, ir embora, ele sentia que se continuasse naquele lugar, se desse ouvidos àquelas palavras, sua vida mudaria de maneira que nunca mais seria a mesma. Ele sentia que tinha nas mãos uma escolha, e nesse momento ele ouviu com clareza uma voz, alguém maior que ele, que a mulher, alguém que estava acima deles, das nuvens escuras, da Terra, da Lua, esse alguém lhe dizia, "se der ouvido à proposta feita, uma volta custará muito caro a você, você precisa sair daí, correndo".
      Tudo isso passava por sua cabeça enquanto os olhos grandes e azuis daquela senhora estavam fixos nos seus olhos. Com uma força de vontade que ele achou que não tinha, fechou os olhos, abaixou a cabeça, respirou fundo e num instante, que pareceu durar horas, algo muito louco aconteceu. Ao som do batuque dos instrumentos, que tocavam ainda mais alto, como em um filme com velocidade alterada, onde tudo se passa rapidamente e para trás, a mulher voltou ao portão, o cigarro retornou à sua mão, a fumaça solta no ar voltou à boca da velha, uma, duas, três, várias vezes. Então, ela entrou na casa, as pessoas voltaram à casa, os casais, as mulheres, depressa, ao som alto dos atabaques que tocavam freneticamente cada vez mais rápido, até que a porta se fechou. Subitamente ele abriu os olhos, o mundo parecia ter voltado ao normal de novo.
      André estava na soleira do açougue, algumas casas antes da casa verde, a chuva caía fortemente, e ele saiu do transe, o batuque ainda soava, mas lá no fundo, bem baixo. Ele chacoalhou a cabeça, despertou e atravessou a rua, em direção à sua casa. André chegou em casa poucos minutos depois, tinha uma certeza em seu coração, iria embora daquela cidade, não ficaria mais preso a um desejo que não poderia se realizar, a uma mulher que já não o queria. Ele iria atrás de seus sonhos, tocar a música que mais gostava, mesmo que tivesse que ganhar menos, mas ele viraria a página que encerrava um capítulo de sua vida.
      Na manhã seguinte, depois de tomar o café na padaria, ele parou numa banca de jornais, ainda chuviscava e ventava. Enquanto olhava o preço de umas revistas importadas sobre tecnologia e áudio, o vento bateu num jornal que estava na prateleira de baixo que se abriu, ele então viu, no meio da página, uma publicidade: "O centro espírita Maria Letícia convida você para seus trabalhos, reuniões às sextas-feiras, às vinte e duas horas", embaixo do convite havia um desenho, André reconheceu, era a senhora que ele havia encontrado na noite passada.
      - Amigo, quem é essa mulher na figura? - perguntou André ao jornaleiro.
      - Maria Letícia, famosa aqui na cidade.
      - Acho que falei com ela ontem à noite...
      - Falou com ela? Bem, dizem que o espírito dela baixa nesse centro, mas o lugar só abre às sextas.
      - Mas pra baixar, a pessoa não tem que estar morta?
      - Sim, Maria Letícia morreu nos anos sessenta, era fazendeira rica, dizem que foi assassinada pelo capataz de uma de suas fazendas, que depois se matou, parece que ele gostava dela, mas ela não queria nada com ele. Outra versão diz que a mulher dele, num ataque de ciúmes, matou os dois.
      - Como assim, ela morreu?
      - Morreu...
      - Mas eu falei com ela ontem...
      - Você viu foi um fantasma - riu o jornaleiro.
      - Ela disse que queria fazer uma troca comigo...
      - Boa coisa não era, devia querer sua alma...
      André teve a oportunidade de fazer uma escolha, não, era bem mais que arrumar uma religião, que passar a seguir uma visão de espiritualidade. A escolha era continuar preso a algo que o levaria a nada, celebrando uma coisa que deu errado, ou se aventurar no novo, no desconhecido. Inseguro? Mas muito melhor do que aquilo que ele tinha até então. André fez a escolha correta, agora estava mais certo que nunca, iria embora daquela cidade, iria recomeçar em outro lugar, iria atrás do tempo, algo que só os corajosos provam porque deixam para trás o medo, o passado, quando dão o primeiro passo rumo ao futuro.

terça-feira, 8 de março de 2016

__"Hocus Pocus" (Focus)

      Mil anos cabem nos anos 1960 e 1970, tal a diversidade e quantidade de talentos, essa faixa é master piece universal do rock, maravilha!!

segunda-feira, 7 de março de 2016

_Inteligência Artificial (Steven Spielberg/2001)

      O filme é um projeto de Stanley Kubrick, sobre a possibilidade da criação de máquinas com sentimentos, o roteiro criado por Spielberg foi baseado em um conto de Brian Aldiss chamado "Supertoys Last All Summer Long", uma obra que reúne Kubrick e Spielberg deve ser considerada.

domingo, 6 de março de 2016

Só mais uma mesa de bar

      Preciso escrever, tenho necessidade de inventar coisas, mundos que eu possa controlar, vou colocar algumas pessoas num bar e ver no que dá. É assim que começa, não se inventa uma história para descobrir personagens, a história não é a dona dos personagens, mas são os personagens que têm uma história. Basta soprar-lhes vida, dar uma oportunidade, deixar que eles falem com as pessoas, caminhem pela cidade, acordem, trabalhem, estudem, amem, durmam, usem a internet, o telefone, ouçam música, vejam filmes, televisão, que tomem um simples café, e tudo acontece...

      Todos estavam lá, dois casais e mais três amigos solteiros, um dos casais já junto há cinco anos, Raul e Laísa, o outro, Carlos e Clarice, há menos de seis meses, os solteiros eram Raquel, Cris e Olavo. Cheiro de bar, de cerveja envelhecida, eles eram sócios do lugar, estavam lá toda semana.
      Cléo, a cantora, fazia uma Elis Regina sincera, mesmo que desafinada nas notas altas, entregue e molhada de emoção, o tecladista, Leopoldo, em piloto automático, esperava terminar a entrada para tomar uma nova dose de uísque. Cléo era jovem, bela, pernas grossas, olhos grandes e brilhantes, cabelos encaracolados, uma atriz que cantava, conhecia Elis, Milton e Djavan pelos velhos vinis de seus pais, não era nascida no tempo em que esses clássicos tocavam no rádio em qualquer estação e não só em especializadas, como hoje. Leopoldo tinha os álbuns originais, comprados por ele mesmo na adolescência, guardava "Atrás da porta", "Travessia" e "Flor de lis" nas paredes de sua memória, pra ele essas canções não eram nostalgia de butique, eram trilha sonora de primeiros momentos que viveu um dia.
      Músicas, a princípio, são só músicas, letras e melodias, com o tempo, contudo, ganham rostos, gostos e cheiros, constroem espaços e tempos dentro de nós, adquirem corpos que nos possuíam antes, ao nascerem do coração do artista. Na "vibe" de uma canção fazemos loucuras, nos entregamos sem medo e sem culpa, alados por uma emoção impressa em nossas almas buscamos o impossível, reviver paixão antiga, ousar algo que nunca fizemos.
      - Raquel? Está distante hoje...
      - Sei lá, Olavo, só mais uma noite de sexta.
      - A primeira do resto de nossas vidas?
      - A última do começo - Raquel riu enquanto levava o copo de cerveja à boca.
      - Bem que podia ser hoje - disse Cristina, amiga louca de Raquel.
      - Hoje, o quê? - perguntou Raquel.
      - A noite em que conheço o homem dos meus sonhos - respondeu Cris com os olhos parados no tecladista.
      - Não vai conversar com ele? - perguntou Raquel.
      - Ah, não tem mais nada pra ser dito, acabou.
      - Ele morreu e não o enterraram - disse Olavo com desdém.
      - É o jeito dele, quieto, teve um tempo que isso me atraía, eu achava misterioso, hoje é só tédio - disse Cristina.
      - Eu sou mais o guitarrista, não sei porque a Cléo não o trouxe mais, o Leopoldo é muito parado, só toca música lenta - disse Olavo.
      - O Leo gosta de música sentimental, além do mais a dupla é Cléo e Leo, combinam mais os nomes - disse Raquel defendendo o tecladista.
      - Gente, estamos indo, depois a gente se fala - Carlos e Clarice saíram de cena, era paixão recente, queriam mais é privacidade, transar em algum lugar qualquer.
      - Vamos dançar? - o casal que ficou foi para a pequena pista de dança, ela sempre queria dançar quando Cléo cantava "Dois pra lá, dois pra cá".
      Um cara entrou no bar e foi para o balcão, sentou-se num banco e pediu algo, Cris o viu e prendeu seu olhar nele, ela o olhava, mas sua cabeça estava longe, fantasiava, estava entediada, não da noite, mas da vida, queria algo que ativasse suas endorfinas, qualquer coisa, qualquer coisa mesmo.
      - Ele é bonito - disse Raquel.
      - Com certeza é casado - respondeu Cris.
      - Não sei - disse Raquel.
      - Acho que é gay - brincou Olavo, ele sabia que o cara não era gay, os gays se reconhecem num primeiro olhar.
      - Basta o cara ser elegante, maduro e sozinho pra você dizer isso - disse Cristina levantando a mão e dando sinal para o garçom trazer mais bebida.
      - Vocês nem ligam mais pra beleza, querem é grana, se o cara for rico, pode ser horroroso - zombou Olavo.
      - Eu gosto de homens bonitos, nem precisam ser bombados, gosto deles naturais - disse Raquel.
      - Do jeito que estou, pode ser até alienígena - pensou alto Cris.
      - Os homens são de Marte, - riu Olavo - você está a perigo, amiga, vai acabar fazendo bobagem.
      - Bobagem, vem em mim que estou facinha - disse Cristina rindo alto, tão alto que o cara lá do balcão olhou pra ela.
      - Ele olhou pra você - disse Raquel.
      - Também, escandalosa... -  disse Olavo.
      - Vou lá - disse Cris levantando-se.
      - Amanhã aguenta a choradeira, amiga borderline não é fácil, se empolga depressa, depois se atormenta com culpa - disse Raquel.
      Cris esgueirou-se como cobra até o balcão, apoio-se com os braços posicionando estrategicamente seu bum-bum, a fêmea iniciava seu ataque. O cara olhou para o corpo de Cristina, ela olhou para ele, sorriu de maneira que ele percebesse que ela sabia o que ele pensava. Daí começaram a falar e o que se iniciava só terminaria na madrugada.
      - E aí Raquel, e você? Não vai atacar ninguém? - perguntou Olavo.
      - Não é meu jogo, não gosto de pegar caras em bar - respondeu Raquel.
      - Acho que também estou assim - disse Olavo.
      - Já fomos casados, eu sei onde tudo vai dar - disse Raquel.
      - Dá tudo na mesma, hétero, bicha, paixão sempre acaba.
      - Ou se transforma em obsessão, o que é pior.
      - Eu que o diga - concordou Olavo tentando engolir um refluxo amargo que voltou do coração.
      - Todos somo carentes e ciumentos, de alguma maneira, mas relação gay parece que é sempre mais possessiva, estou enganada? - perguntou Raquel.
      - É verdade, talvez seja porque são dois homens, homem é sempre homem, não é porque gosta de homem e não de mulher que não é homem.
      - As sapatinhas também são bem inseguras.
      - Nem todas, mas concordo que existe uma passionalidade exagerada nos gays.
      - É?
      - Relacionamento gay é mais delicado, sempre somos aqueles que estão indo contra à maioria, somos essencialmente subversivos, estamos sempre em guerra, ou melhor sempre estão em guerra contra a gente, isso abala qualquer um. Se nos beijamos todo mundo olha, se vamos para um hotel e pedimos um quarto com cama de casal, os recepcionistas fingem demorarem para entender, tentam nos convencer que queremos com duas camas de solteiro. Você também tem que concordar que o mercado é menor, quando a gente acha alguém tenta guardar com unhas e dentes.
      - Mas as coisas estão diferentes hoje em dia, nas escolas os jovens tratam os gays de forma mais natural.
      - As meninas sim, mulher é sempre mais complacente, mas ainda tem muito cara que nos trata com violência, parece que querem compensar alguma insegurança.
      - As meninas estão bem diferentes daquelas do meu tempo, brigam igual aos meninos, às vezes são até mais violentas.
      - Culpa dos pais héteros que as criaram, quero ter filhos, vou criá-los com respeito e respeitando a todos.
      - Também penso assim, dou o que acho ser melhor, mas que cada um faça suas escolhas.
      Cristina passou por eles, de mão dada com o cara, quando estava na porta do bar virou pra trás e deu uma piscada de olho para os amigos.
      - Elegante ele, bem vestido, cabelo arrumado - disse Olavo.
      - Só quero ver a choradeira amanhã - disse Raquel, balançando a cabeça.
      Os músicos deram uma pausa, o casal de amigos voltou à mesa. Leopoldo, do teclado, fez sinal chamando Raquel que foi até ele.
      - Tudo bom? - disse Raquel.
      - Vou indo - disse Leopoldo melancólico, como sempre.
      - Você ainda não tocou minha predileta - disse Raquel.
      - Abro o próximo bloco com ela, também adoro "Beatriz".
      Ele ficou quieto, Raquel deu um gole na bebida, o garçom se aproximou e trouxe a dose costumeira de scoth de Leopoldo.
      - Obrigado - agradeceu Leo.
      - Está mais quieto hoje - disse Raquel.
      - Cristina saiu com um cara...
      - Você conhece a figura...
      - Acho que não, até hoje não entendi o que aconteceu entre nós...
      - Eu sei.
      - Não fiz nada errado, eu a amava pra caramba...
      - A Cris é minha amiga desde a faculdade, gosto muito dela, mas enquanto ela não resolver com ela mesma não vai ser feliz com ninguém.
      - Mulheres são complicadas.
      - Nem todas.
      - Ela está de um jeito e de repente muda, parece que se transforma em outra pessoa.
      - As coisas não são tão simples, ela sofreu muito com os pais...
      - Todo mundo sofre com os pais...
      - Mas ela não digeriu isso até hoje, e não é só isso, ela tem esse problema, os remédios...
      - Borderline, virou moda hoje em dia, bipolares, esquizofrênicos...
      - Algumas pessoas se aproveitam da moda, mas no caso dela é verdade, ela já teve crises bem sérias, borderline é pior que bipolaridade...
      - Eu só queria protegê-la...
      - É difícil proteger alguém de si mesmo...
      - A Cléo está voltando, preciso começar, depois a gente se fala, obrigado Raquel - disse Leo, dando talvez o primeiro sorriso da noite, atrás daqueles pequenos olhos míopes. Leopoldo era um cinquentão baixinho, com pança de cerveja, não era um homem bonito, mas tinha seu charme, era pianista, isso já basta para que um cara seja especial.
      - Se cuida - Raquel era sempre muito carinhosa com ele, aliás, com todos, era a amigona que segurava todas as barras, talvez por causa disso, ter tempo para todos, nunca tinha tempo pra ela mesma. Seu ex-marido saiu da vida dela justamente por isso, era cuidado demais, ela o acostumou mal, esqueceu-se de uma das regras mais importantes de uma relação: não deixe o outro pensar que tem você por inteiro, sempre esconda um pouco do jogo, e se não tiver nada para esconder, minta, invente alguma coisa. Só nos prendemos a alguém sobre o qual não temos controle, é a angústia da impotência que nos desafia a continuar apaixonados, para tentar ter o poder em algum momento.
      Ela voltou à mesa, o casal de amigos estava sentado, Olavo havia se levantado, tinha ido conversar com um amigo no balcão.
      - E vocês dois, quando vão oficializar a união?
      - Está bom assim - disse Laísa.
      - Bem que eu queria ver você de noiva, não ia ficar linda, Raquel? - disse Raul.
      - Com certeza - respondeu Raquel. Raul era divorciado e tinha um filho do primeiro casamento. Agora, que a ex estava namorando, as coisas estavam bem, mas antes vivia brigando com ela. Não adianta, mesmo depois de separada, do ex estar comprometido com alguém, enquanto a mulher não se apaixonar, no fundo, sempre achará que tem algum direito sobre o ex, pode passar o tempo que for. Ele não havia se casado no religioso, da primeira vez, foi só no civil, e isso no final, numa tentativa de melhorar a relação, um ano depois que se casou no civil, entrou com os papeis para o divórcio.
      - Vamos? - disse Laísa - tenho que trabalhar amanhã cedo - eles deixaram dinheiro para a parte deles na conta, se despediram e foram embora, nisso Olavo voltou.
      - Gilberto está com outro - disse ele sobre o ex.
      - No duro? - respondeu Raquel.
      - Melhor, agora desencano de vez.
      - Temos que partir para outra, meu amigo, já velamos defuntos por muito tempo.
      - Você está a fim de ficar mais?
      - Não, estou cansada.
      Eles pediram a conta, pagaram suas partes e a da Cris e foram embora.
 
      Depois que você cria, se apaixona por eles, e aí, torna-se responsável pelos personagens. Eles são inocentes, estavam quietinhos em algum lugar do limbo da consciência coletiva, quando nós os acordamos, demos vida a eles, expusemos suas intimidades, os presenteamos com o privilégio luxuoso da escolha. E agora, para onde eles irão, o que farão, serão felizes? Talvez fossem mais felizes antes, no limbo, quando eram só almas. 
      Brincar de Deus é algo sério, tanto nos tornamos mães, gerando e parindo, esperando e sofrendo, quanto podemos virar assassinos, sádicos, dando fim a sonhos só por um momento de fuga. Brama ou Shiva? Não, apenas humanos, e assim serão os personagens, limitados às nossas humanidades, visto que são sopros de vida nossos. Se amamos, eles amarão, se matamos, eles matarão, se fomos inconsequentes, assim eles serão, se somos covardes, terão medo de sair da rotina, de se aventurar, de deixar de cumprir um compromisso só para ficar só e olhar para o céu. Se estivermos encarcerados naquilo que nos disseram que éramos, nas tradições de nossos pais, sendo apenas cópias de referências próximas, preguiçosos e acomodados, os personagens nem existirão, não haverá em nós força criativa para conceber arte. 
      Por que tantos músicos são limitados, mornos, incapazes de seduzir alguém com sua arte? Mesmo que estudem por horas escalas e acordes, a música não terá capacidade de emocionar, serão antíteses do flautista de Hamelin, afastarão ao invés de atrair, não criarão nem a morte, porque para tirar é preciso antes dar a vida. Isso acontece aos que erguem em volta de si mesmos cercas de nãos, desconhecem o mundo, é o que é conhecer a vida senão saber das pessoas? Cada pessoa com a qual nos confrontamos é um mundo que se abre, alguém nunca é só, é sempre uma legião de seres, muitos desses, nunca se manifestarão, mas todos eles são escolhas, possibilidades de ser e de fazer. São esses seres que ficam aprisionados no limbo e que podemos trazer à vida através da arte, da música, como deste texto que escrevo agora.