Não foi assim, de um dia pro outro, não acordei em uma manhã e percebi que o mundo não existia mais, foi aos poucos.
Às primeiras dores, não dei muita importância, não ficavam em mim, ainda estava à sombra da infância quando somos protegidos por uma potência maior. Contudo, aumentando as decepções intrínsecas à vida, enfraqueceram-se cada vez mais minhas tênues proteções. De nada adianta racionalizar quando a ferramenta de racionalização nasceu quebrada, ao contrário, a incapacidade de praticar o que parece mais lógico, só debilita ainda mais a mente, então, a loucura naturalmente torna-se mais interessante. Talvez o cuidado médico ainda na adolescência pudesse fortalecer minhas resistências, talvez o entendimento de família pudesse amenizar minha carga, talvez a consciência de minha vulnerabilidade pudesse me consolar, tirando-me da condição de culpa extrema, me entregando alguma explicação do porquê das coisas, talvez, mas nada disso aconteceu.
Segui sozinho, machucado e machucando pra depois pagar o preço caro do uniforme do remorso que sempre leva no peito a medalha da vergonha, as vestes daquele que carrega consigo uma mente dividida. Sem filtros, amplificam-se os extremos, até rasgar o diafragma e tudo soar como o estrondo de um tiro de canhão. Então, as noites de sono profundo já não existiam mais, após tentar por uma hora ou duas desligar e dormir, eu me levantava. Voltava pra cama depois de umas três horas assistindo TV e compondo músicas que ninguém nunca ouviria, para conseguir umas quatro horas de sono leve que nunca saciava. Acordava pesado, só olhar o dia, doía, era difícil enfrentar o mundo, a cidade revivia e eu morria. Nas noites que saía pra trabalhar era mais fácil, mas um pianista não consegue tocar sete noites na semana, se fosse assim, o ofício seria o céu na terra. O inferno é pisar a realidade dos outros, já que tocando crio a minha própria realidade. As melodias me dão asas, mesmo as lembranças doloridas que algumas canções pinçam do fundo do poço de nossas memórias, são prazerosas com os dez dedos sobre as teclas de uma bom piano no diapasão.
Mas eu precisava enfrentar os dias pra completar o orçamento, dar aulas para uma maioria de alunos que não tinha nenhum talento, apenas achava bonito tocar o instrumento, ou pior, forçada pela mãe que achava chique o piano. Se eu fosse mais galinha tinha comido muita trintona frustrada com o marido que passava o dia no escritório e as noites nos bares, enquanto ela sonhava com aquele jovem pianista, de mãos brancas e dedos afilados, pelo qual tinha se apaixonado anos atrás. Sempre tive esse problema, super ego grande demais, não me aproveito das fragilidades alheias, aliás, as frágeis nunca me atraíram, prefiro as falsas frágeis, que fingem ser fáceis e dóceis, mas são misteriosas e sabem dizer não de um jeito especial. Talvez seja esse o motivo de eu nunca ter conseguido ficar com alguém por muito tempo. Hoje em dia, mulheres inteligentes não dependem de homens, elas dão as cartas, se bem que algumas que conheci e que admirei por tanto tempo, que achei mesmo que eram muito pra mim, no final acabaram com um mané qualquer, burro e vagabundo, cheio de charme e de conversa fiada.
O mundo foi me cansando, então, minha cabeça começou a fugir, já não ouvia as pessoas, tudo parecia estar longe, reverberando até o infinito. Quando entro num restaurante, procuro uma mesa num canto, e me sento na cadeira que fica de frente para a parede, não de costas para o ambiente, isso não, assim alguém poder vir e me matar sem que eu saiba. Prefiro aquela que me dá a opção, se eu olho para frente, tenho o descanso da parede, mas se eu quiser, posso olhar para o lado e espreitar as pessoas. Não gosto de gente reunida e conversando, elas sempre falam de mim, mas gosto de observar as pessoas, contudo, faço isso de longe, se alguém senta numa mesa encostada a que estou, me levanto, vou para outra e peço para o garçom transferir os pratos, eles já estão até acostumados com isso. Hoje em dia isso nem me importa mais, já que não ouço e nem vejo nada, tudo fica embaçado, lá no final do túnel onde está o mundo. Minha única dificuldade é vir para a frente quando tenho que fazer o pedido ou preciso pagar a conta. Por isso prefiro self-service, faço meu prato, recebo o papelzinho com o valor e depois passo o papelzinho mais o cartão de crédito para o caixa, só tenho que responder se é crédito ou débito, sem qualquer interação com a humanidade.
Dos quarenta, quando tive minha terceira e pior crise, passaram-se quinze anos, o que vou relatar agora aconteceu há cinco anos. Domingo é um dia ruim, quando não toco. Os bares fecham cedo e naquele domingo de abril eu não queria voltar para casa, a praça era uma boa opção, mendigos, tarados e crentes não estavam por lá. Fazia frio, um vento seco vinha em sentido contrário, ninguém queria estar exposto, mas quando todos se protegem é quando é mais conveniente para mim me expor. Na última crise, as vozes foram cruéis, queriam me matar, mas não deixavam que eu morresse. A morte liberta, demônios não querem conceder liberdade, querem nos manter acorrentados. Foi difícil calar as vozes, não conseguia trabalhar, foi quando parei de vez de dirigir, depois daquilo passei a andar a pé ou de ônibus, eu não conseguia mais me concentrar, mesmo manter o carro em linha reta. Quando melhorei, dirigir fazia minha ansiedade ir às alturas, aparecia em mim um monstro muito feio. Monstros de verdade canibalizam-se e não sentem culpa, os falsos monstros, porém, batem com uma mão e acariciam com a outra, numa relação sado-masoquista. Naquele domingo, as vozes, sob as rédeas dos sais de lítio já eram minhas amigas. O demônio pode ficar bom? Não, mas pode ser mentirosamente convincente, pelo menos por um tempo, até alcançar seu intento. Bem, já convivo com as boas vozes há mais de dez anos, até agora não me fizeram mal, além de me manterem longe da realidade. Do que eu fujo? De nada, não tenho nada pra fugir, não tenho família, mulher, filhos, talvez fuja de meus pais e de meu irmão, meus eternos algozes, mas já faz tanto tempo que não os vejo, agora nem fazem mais diferença.
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"Mente Brilhante" (Ron Howard/2001) |
- Você não se apaixonou mais...
- Acho que nunca me apaixonei - respondi à mulher sentada ao meu lado no banco da praça, algumas pessoas passava por mim rapidamente, se apressavam para a missa.
- Não depende da gente, acontece...
- Qual foi a última vez que você se apaixonou?
- Acabei de me apaixonar...
- Por quem?
- O que você acha? - ela me olhou com aqueles pequenos olhos verdes. Por trás das marcas de expressão, dos cabelos brancos com tingimento já vencido e dos dentes amarelos de nicotina, havia um coração de moça.
- Dói demais... - reclamei eu.
- Qual o problema com a dor? Enquanto há dor, há vida...
- Estou morto há muito tempo, se é que vivi algum dia... - ela colocou a mão direita atrás da minha cabeça e começou a fazer cafuné em meus cabelos, de um jeito muito terno, como há muito ninguém fazia. Então, com firmeza, mas com carinho, puxou-me para ela, me beijou, lentamente, com os olhos fechados, o gosto de anis com tabaco penetrou meu cérebro, depois se afastou, sorriu e se levantou.
- Por quê? - perguntei amargo.
- Por que não?
- Não mereço...
- Bobo...
- Quando eu tinha quatorze anos, uma moça de dezessete me disse isso, ela sempre me olhava com olhos quentes, me comia com eles, se encostava em mim por qualquer coisa. Às vezes, enquanto eu tocava uma peça de piano, ela ficava atrás de mim, eu sentia os seios dela na minha nuca, fervendo. Engraçado como as lembranças hoje me revelam algo que na época eu não percebia, ela estava apaixonada por mim, e eu nem dava bola...
- Bobo... - ria a mulher.
- Tolo, minha alma sempre esteve no tempo errado, dessincronizada do corpo. No passado, quando era menino, minha alma voava para o futuro, querendo descanso. Hoje, quando meu corpo precisa dormir, minha alma voa para o passado, desejando festa. Como se o passado fosse bom, passado só parece bom no futuro. De um jeito ou de outro a gente nunca está presente no presente por inteiros, agradecidos pelo aqui e agora, somos seres eternamente ausentes de nós mesmos.
- Vou andar um pouco, a tarde está linda - disse ela arrumando a bolsa no ombro.
Onde ela via beleza naquela tarde? Eu via, mas acho que mais ninguém via, as mulheres sempre dizem que preferem o verão, pra ficarem bronzeadas, usarem roupas curtas e se exibirem por aí.
- Me apaixonei uma vez - disse o velho sentado ao meu lado.
- Foi bom? - respondi, olhando para a frente, fixando os olhos na água que subia do chafariz da praça, era o único som que eu ouvia naquele momento, a missa tinha começado, todos estavam dentro do templo.
- Foi, até que minha mulher descobriu... - ele sorriu com uma malícia doce e tranquila nos lábios. Poucas vezes a gente sabe a importância do momento que está vivendo, na maioria das vezes, só depois é que nos damos conta que vivemos um momento único, que provamos o sexo de uma maneira que nunca mais proveremos, que experimentamos uma felicidade exclusiva, que nada mais nos dará igual. Pena que nesses momentos, dificilmente a gente paga os preços, desfaz alianças débeis e enganosas para iniciar uma que pode ser a mais profunda e duradoura de nossas vidas.
- Devia ter tomado mais cuidado...
- Mas no final das contas convenci a esposa que não era nada, ela acreditou, ou pelo menos foi isso que me disse, acho que não queria me perder. Foi só uma vez que pulei a cerca, e não foi culpa minha, não procurava por encrenca, a coisa simplesmente aconteceu e me prendeu de um jeito que eu não imaginava. A dona era casada, não queria deixar o marido, e hoje, olhando a coisa de longe, acho que ela tinha casos frequentes, eu não era nada especial pra ela, era apenas o caso mais novo. Talvez o destino tenha sido bondoso comigo, eu caí fora antes dela me dar um pé na bunda, o que me deixaria muito mais frustrado. E quer saber de uma coisa?
- O quê?
- Um ano depois minha esposa faleceu, câncer na cabeça, foi tudo muito rápido. Eu enviuvei e nunca mais me casei, namorei bastante, aproveitei a vida, mas nunca mais me apaixonei, não como daquela vez. Talvez, seu eu tivesse insistido, talvez ela tivesse se separado e ficado comigo, talvez...
- Talvez, talvez, o presente é inexorável, mas o futuro está sempre mudando, a cada nova escolha que fazemos. O passado também muda, em nossa cabeça, reavaliamos as coisas e descobrimos que algo era mais importante do que achávamos, ou menos relevante que pensávamos ser.
- Tudo dá em nada, só aumenta é o vazio do nosso coração, à medida que as mentiras vão sendo reveladas, as escolhas diminuem, o caminho fica mais estreito - concluiu o velho resignado.
- Oportunidades, a vida nos dá algumas, não muitas, nos custarão bastante, mas se não forem aproveitadas, nos arrependeremos pelo resto de nossa existência.
Para quem eu dizia aquelas palavras? Eu nunca tinha tido nenhuma oportunidade, as coisas simplesmente não aconteceram pra mim, o que eu sabia da vida era dos filmes que via e dos romances que lia. Eu era e sempre fui o cara das fantasias, das ilusões, das mentiras, e essas, não diminuem, aumentam cada vez mais em minha cabeça.
- Moço, tem fogo? - sempre tenho fogo, não fumo, mas acho bacana os caras dos filmes abrindo e fechando o Zippo. Comprei um, certa vez, prateado, sem nenhuma decoração, e o levo comigo. Ela tinha na boca um cigarro de cravo, sentou-se ao meu lado e eu acendi seu vício.
- Não está com frio? - ela vestia calça jeans grudada no corpo, All Star preto gasto e sujo, camiseta preta e uma jaqueta surrada também preta, tinha altura mediana, magra com o corte de cabelo da moda dos meninos, curto e com aquele topete moicano. Morena de tanto andar ao sol, olhos negros e grandes, ressaltados com lápis, não usava batom. No pescoço dava pra ver parte de uma tatuagem que parecia tomar todo seu peito, a cabeça e o rabo de um escorpião.
- É um escorpião... - ela riu, delatando minha curiosidade.
- Seu signo?
- Não, de uma garota.
- Deve ser importante pra você.
- É, pena que não sou pra ela...
- Certeza?
- É...
- As coisas mudam - lá estava eu usando frases feitas de filmes novamente...
- As coisas não mudam, as pessoas não mudam, nascem de um jeito e morrem assim...
- O meio nos muda, as experiências...
- Só aparentemente, na verdade só reforçam o que sempre fomos, acontece que tem gente que não sabe o que é, então, quando descobre, acha que mudou, na verdade não era nada, então se tornou alguma coisa, o que sempre foi - ela falava bem, era alguém com estudo.
- Você fala bonito.
- Filosofia ensina a falar bonito...
- Você fez filosofia?
- Fiz.
- É professora?
- Do estado, gosto, é legal estar com a moçada...
- Eu não tenho muito paciência com eles...
- Eles fazem tipo, todo mundo quer parecer durão, mas são carentes até, eu era assim...
- Eu era um jovem até que seguro, liderava a classe, tinha as melhores notas, fui ficando tímido e carente com o tempo, minha vida parece toda ao avesso...
- Na vida só mudam os modelos de celulares...
- Acho que sou a única pessoa no mundo que não tem celular, ainda mantenho uma secretária eletrônica...
- Cara, você está velho...
- Sempre chego em casa com a esperança que uma mensagem mudará a minha vida, um convite pra tocar num navio, não só pra uma temporada, mas pra sempre, aí eu viajaria pelo mundo, se desse fixaria residência em Paris e tocaria bossa-nova em algum café.
- Você é músico?
- Tento ser...
Escureceu, noite de domingo em cidade pequena é sinistra, a missa tinha acabado, todos tinham ido pra casa, eu queria ir embora. Naquela noite elas foram generosas comigo, à medida que o tempo passa ficaram mais sofisticadas, é claro que se eu me der ao trabalho acharei nas memórias traços de cada uma delas. A mulher parecia minha primeira professora de piano misturada com aquela moça de dezessete que gostava de mim. O homem me lembrava meu pai em uma vida secreta que ele tinha, minha mãe ainda está viva, mas acho que não pra ele. A jovem era uma lembrança mais recente, de uma cantora que dividia a noite comigo em um bar, se bem que a cantora era baixinha e gordinha.
Mas não é tão simples assim, elas nunca são uma, são várias, costuradas de pedaços de almas que cruzaram o meu caminho ou que eu gostaria que cruzassem. Quem vai entender o que nossa mente faz com tudo o que experimentamos ou com tudo o que experimentaram outros antes de nós e nos passaram pela consciência coletiva? Que deem os nomes que preferirem, lembranças, vidas passadas, vozes, espiritual ou psicológico, a verdade é que somos marionetes nas mãos desse mecanismo desconhecido, incontrolável e maravilhoso que mora dentro de nossas cabeças.
Por que me lembro dessas três vozes em especial? Porque foram precisas demais e deixaram em mim um sentimento diferente, foram mais que um sonho, pareceram uma revelação, e quanto mais eu penso nelas, mas claras ficam. Naquela noite eu voltei para casa e escrevi aqueles três encontros, foi o meu primeiro conto. Depois vieram outros, até que comecei a escrever romances, bem, eu achei uma utilidade para as vozes que falam comigo, fiz delas estórias, descobri algo tão prazeroso quanto a música. Hoje escrevo matérias para páginas da net, revista e jornal, me sinto produtivo, achei sentido naquilo que sou, não sou só um maluco inútil, mas um escritor, tudo começou com aquelas três vozes apaixonadas.