quarta-feira, 30 de março de 2016

morte, desconexão, solidão

As Hespérides eram as deusas gregas do entardecer e da luz dourada do crepúsculo. As três ninfas eram filhas de Nyx (a Noite) ou do titã Atlas, o carregador da cúpula celeste. A elas foi confiado o cuidado da árvore dos pomos de ouro, presenteada a Hera no dia de seu casamento por Gaia (a Terra).
      Prometi a mim mesmo que seria honesto tanto quando eu acho que posso ser nesses trinta textos, que desnudaria minha alma por completo, sem pudores ou receio de desapontar alguém sobre aquilo que realmente sou. Obviamente não contei tudo, não porque não sei ou não quero, mas porque sempre há limites, e muita coisa sobre nossas intimidades a maioria das pessoas não entende e nem quer entender, isso também poderia fechar portas que quero manter abertas. Que portas são essas? As das minhas amizades mais queridas, poucas, mas especiais, não necessariamente as mais longas, e surpreendentemente também muitas que resistiram ao tempo e às mudanças de todos nós. Sim, porque podemos nos apaixonar por alguém que não existirá mais no mesmo corpo, daqui a alguns anos, outros porém, poderão se transformar em almas deliciosamente interessantes daqui a algum tempo.
      Na intenção de ser sincero, brinquei com a morte, com a desconexão e com a solidão. O que é melhor: se apaixonar ou temer? Não consigo seguir apaixonado quando perco o medo, o desconhecido é que me prende, o imprevisto é que me atrai para perto. A poesia torna o anjo da morte, a psicose da desconexão e o destino à solidão, jovens tão lindas e pueris quanto pervertidas e astutas, como as almas tão velhas quanto o mundo que possuem. Mas do que se tratam esses textos senão de poesia? Como tal é fantasia, mesmo que nos conduzam ao horror, ao pior de todos os pesadelos, aquele cujo monstro é tão terrível que não pode ser visto. Pode ser sentido, bem próximo, atrás de nós, se aproximando, mas quando olhamos não o vemos, ele já se moveu para a nossa frente, e se nos viramos novamente ele se moverá e assim permanecerá, sempre invisível.
      Será que é isso que encontramos quando nos desnudamos de tudo? Morte, desconexão e solidão? Não, não sou um suicida maluco e solitário, tenho uma família linda, uma mulher completa e filhas perfeitas, para mim são tudo. Talvez seja por isso, por essa segurança que funciona como uma corda, forte e bem amarrada, que eu me permita, segurando nela, descer até o fundo do poço, abrir o alçapão e caminhar pela rede de túneis secreta que existe no underground da minha alma. Eu sei, que se precisar, terei à mão a corda, ela me guiará até o alçapão, e com ela poderei subir e retornar à realidade. Mas por mais que eu tenha lindos sonhos na realidade, os remédios não me deixam dormir para sempre, é preciso acordar para os sonhos da demência e é neles que as três jovens de almas velhas residem, elas sempre estão me esperando com largos sorrisos, cínicas, caladas, curvando seus indicadores e me chamando.
"O Jardim das Hespérides" (Frederick, Lord Leighton - 1892)
    Penso que é melhor sermos honestos com o que realmente somos, para não sair por aí enganando-nos, buscando soluções que não existem, viciando-nos em mentiras, seja o prazer, sejam drogas, sejam ideologias, que só nos faz pessoas piores, que se colocam como proprietários de curas mágicas. Às crianças que se ensine tudo sobre o mundo e a vida, que lhes demos as doses diárias de um pouco de ilusão, de fantasias, de crenças, não para enganá-las, mas para que elas tenham a visão mais abrangente possível de tudo o que chamamos universo, seja o visível, seja o invisível. Ensinemos a elas ciências, todas, artes, todas, religião, sim, mas sempre com respeito, com cuidado, para que elas não se tornem equivocados que acham saber mais que os outros. Se as certezas forem encontradas, com facilidade na superfície ou após duras escavações nas profundezas, que nossas crianças aprendam a guardá-las para si e depois pô-las à prova.
      O pior dos males, contudo, aquele que machuca inocentes, aquele que nos faz predadores egoístas e cegos destinados a arrancar pedaços da própria carne, esse flagelo, que todos guardamos dentro de nós e que precisa ser controlado a todo custo, não precisa ser declarado em público, talvez nem os melhores amigos mereçam essa desgraça. Eis aí o maior trabalho desta vida, aquele que suga a maior parte de nossas forças: manter o monstro que nos habita bem preso. A custo de fé? Sim, para os que têm fé. A custo de vodca? Sim, enquanto tiverem fígado. A custo de arte? Sim, para os que podem acordar na demência, observar a morte, a desconexão e a solidão, mas não ceder aos seus desejos, antes fazer poesia. A custo de tudo o que limita o pior dos males ao nosso próprio coração, já que é por se acharem no direito de libertar monstros, é que tantos machucam a muitos, governam países e são adorados por idiotas em todo o planeta, só para compensarem um ego que não aceita a morte, a desconexão e a solidão nossas de cada dia.
      Flerte com a loucura, mas não se case com ela, mantenha uma relação platônica com a demência, à distância, até fantasie tomar a insanidade nos braços e beijá-la, faça isso nas noites em que acorda morto, desconexo e solitário, mas quando sonhar de realidade, realize o melhor que pode para manter um amor de verdade ao seu lado, para ensinar às crianças sobre tudo o que há de bom e simples nesta existência. A vida é um doce engano, um faz de conta que deve ser levado a sério, um monte de mentiras que na fornalha da paixão resultam numa pepita de verdade, verdade essa que não pode ser vendida, pois só o fato de falarmos sobre ela com alguém, já a dissolverá em milhões de moléculas. Certo e errado? Claro que existem referências, mas não para serem comercializadas como peixes velhos e fedidos numa feira livre, são pérolas, raríssimas, únicas, que devemos guardar dentro do coração. Que os outros, que estão do lado de fora de nós, tirem suas conclusões, vejam, se é que querem ver, aprendam, se é que temos algo a ensinar. Mas que o tempo nos leve a ser mais mansos de mente, mais calados de fato, mas sempre vivos, questionando, meditando, com os pés firmes no chão, mas com o coração nas portas da morada do pai e criador de todos os espíritos.

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